Nenhum filme brasileiro causou um impacto tão profundo nos primeiros anos do século 21 quanto Cidade de Deus. Lançado nos cinemas em 30 de agosto de 2002, em poucas semanas o longa-metragem de Fernando Meirelles bateu o recorde de público da chamada "retomada" do nosso cinema, iniciada em meados dos anos 1990. Mais de 3,5 milhões de pessoas viram o filme na tela grande.
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Mais até do que o êxito de bilheteria superado desde então por meia dúzia de produções da Globo Filmes , o que tornou Cidade de Deus um fenômeno único foi sua tremenda repercussão social, cultural e política.
A recepção da crítica foi dividida e acalorada. Criou-se quase um "fla-flu" em torno do caso. Para os entusiastas, era a primeira vez que se falava da violência na favela "a partir de dentro", uma vez que o autor do livro que inspirou o filme, Paulo Lins, tinha sido morador da Cidade de Deus e se baseara em personagens e situações reais. Além disso, a maior parte dos atores provinha da própria comunidade ou de outras semelhantes, graças a um trabalho de recrutamento e oficinas junto a grupos como o Nós do Morro.
Assim, o filme romperia com a tendência de retratar a favela de modo paternalista ou populista, a partir do ponto de vista da classe média branca intelectualizada.
Reação virulenta
Mas a reação contrária foi igualmente apaixonada e veemente. Para a crítica e professora de cinema Ivana Bentes, o filme se enquadrava no que ela chamou de "cosmética da fome", ao glamourizar a miséria e enquadrar sua abordagem nos parâmetros do cinema de ação hollywoodiano. Para a antropóloga Alba Zaluar (que servira de consultora para a escrita do romance de Lins), a proporção de negros e brancos na favela aparecia distorcida na tela, como se a Cidade de Deus fosse um gueto negro nos moldes dos norte-americanos.
O rapper e ativista MV Bill acusou o filme de trazer um estigma aos moradores do bairro, identificado como lugar de crime e gente violenta. Até as dificuldades de arranjar emprego teriam aumentado depois de Cidade de Deus.
Passados dez anos, assentada a poeira dos debates, o que ficou de Cidade de Deus? Qual foi seu efeito duradouro para o cinema, para a comunidade retratada, para o país?
Do ponto de vista cinematográfico, é inegável sua contribuição para a elevação da qualidade técnica, para o aprimoramento de uma dramaturgia realista e para o desenvolvimento, entre nós, de uma narrativa moderna de cinema de ação. Não foi por acaso que o filme foi indicado ao Oscar em quatro categorias (direção, roteiro adaptado, fotografia e montagem) e abriu as portas de uma carreira internacional para Fernando Meirelles.
Influência e subprodutos
Na esteira do sucesso de Cidade de Deus vieram uma série de tevê e outro filme, ambos chamados Cidade dos Homens, sem contar os inúmeros curtas, longas e documentários sobre violência na favela influenciados direta ou indiretamente por ele.
O próprio fato de abrir, no habitualmente elitista meio cinematográfico, uma brecha para atores, consultores e técnicos da comunidade foi decisivo para que, anos depois, surgisse um filme como a produção coletiva 5x Favela Agora por Nós Mesmos.
As circunstâncias de produção do filme de Meirelles e o destino posterior de vários de seus participantes são tema do documentário Cidade de Deus 10 Anos Depois (leia mais na página 4), que está sendo finalizado pelo produtor Cavi Borges e pelo cineasta Luciano Vidigal, que dirigiu também um dos episódios de 5x Favela.
E para o bairro Cidade de Deus, afinal, houve mais benefícios ou danos? No entender do escritor Paulo Lins, que falou com exclusividade à Gazeta do Povo, "o filme só trouxe coisa boa". Ele elenca as conquistas: "Foram feitos vários investimentos na cultura, no esporte, no lazer. Apareceram novos artistas, a imprensa se voltou para os problemas que acontecem lá e, por último, a visita do presidente Obama trouxe mais visibilidade para o bairro".
Para o próprio Paulo Lins, como escritor e como indivíduo, Cidade de Deus também deixou sua marca. O sucesso do livro (150 mil exemplares vendidos, sem contar as traduções para uma porção de línguas), em grande parte alavancado pelo filme, desconcertou o autor ao ponto de lhe causar um grave bloqueio criativo, do qual ele só saiu agora, com a publicação de seu segundo romance, Desde Que o Samba É Samba (Editora Planeta).
O escritor considera o filme uma boa adaptação de seu livro, com um senão: "Só não gosto da construção do personagem Dadinho/Zé Pequeno, que é o vilão, o personagem do mal. É aquele sujeito que nasce ruim e vai se dar mal no final para o mocinho sair vitorioso, quando na verdade todos os personagens são vítimas de um país racista, desigual e corrupto".
Sua outra queixa é financeira: "Muita gente acha que eu fiquei rico com o filme, mas vendi os direitos por R$ 80 mil e tinha 5% do lucro da produção, mas até agora não vi a cor desse dinheiro".
CADERNO G | 8:21
Atores que participaram do filme contam o que aconteceu com eles depois do longa



