
Quando se pensa em Argentina, mais precisamente na cidade de Buenos Aires, a primeira imagem que vem à cabeça de muitos é a de um casal entrelaçado, bailando ao som de um bom e velho tango. Trata-se de um estereótipo? Sim, e qual é o problema? Há clichês bem mais comprometedores.
O que talvez seja incômodo para argentinos e seus (e nossos) vizinhos uruguaios é o que esse lugar-comum pode representar: a idéia cristalizada e imutável de uma manifestação cultural que continua viva, pulsante. E em transformação. Foi com essa inquietação que os músicos e compositores Gustavo Santaolalla (leia quadro), vencedor de dois Oscar consecutivos de melhor trilha sonora, e Juan Campadónico tomaram a decisão de reunir artistas dos dois países. O objetivo foi criar "uma música contemporânea do Rio da Prata".
O projeto, que pode soar deveras pretensioso enquanto intenção, recebeu o nome de Bajofondo Tango Club, hoje uma das formações latino-americanas mais badaladas no mundo, disputando atenções como o multinacional Gotan Project. O grupo acaba de lançar no Brasil seu novo CD, Mar Dulce
Se, no início de sua jornada, o Bajofondo era mais um projeto, uma empreitada, o coletivo musical hoje já não evita se assumir enquanto banda de verdade. Esse desejo por uma continuidade veio depois do primeiro CD e das turnês ao redor do mundo que, aos poucos, foram moldando a aliança, que reúne produtores instrumentistas e cantores. Além de Santaolalla e Campadónico, integram a formação o pianista e compositor Luciano Supervielle, Martín Ferrés (bandoneón), a vocalista e VJ Verónica Loza, Javier Casalla (violino), Gabriel Casacuberta (baixo) e Adrian Sosa (bateria).
Rótulos
Como o mundo pop adora criar rótulos, sobretudo para denominar manifestações que não consegue muito bem classificar, o Bajofondo, assim que veio ao mundo, no início desta década, recebeu sua respectiva "etiqueta": tango eletrônico. Acontece que, à medida em que a música do grupo cresce, evolui e se expande, a denominação começa a se tornar redutora.
Para o argentino Gustavo Santaolalla, um músico que já transitou por vários matizes musicais, o Bajofondo é mais mais do que esse termo cunhado pela mídia pode abarcar. O que a banda tenta fazer é, a partir de uma observação constante dos movimentos musicais de Buenos Aires e Montevidéu, criar uma sonoridade própria, que beba dessas ricas fontes sonoras.
É óbvio que estão presentes no repertório do Bajofondo gêneros como o tango, a murga (banda de músicos ambulantes), a milonga e o candombe (ritmo afro-uruguaio, gerado entre descendentes de escravos). Também não ficam de fora dessa mistura influências como os 40 anos de rock argentino e uruguaio, o hip-hop e a eletrônica.
De uma certa forma, portanto, não seria incorreto afirmar que o trabalho da banda tem ligações conceituais com a produção de artistas brasileiros como Bebel Gilberto, Marcelo D2 e a banda Bossacucanova, todos multifacetados.
O primeiro álbum do grupo, Bajofondo Tango Club, lançado em novembro de 2002, vendeu 300 mil cópias e conseguiu um feito interessante: foi ouvido tanto em clubes, onde a eletrônica impera, quanto nas tradicionais milongas. O registro rendeu à banda o Grammy Latino de melhor álbum instrumental pop.
Nos últimos cinco anos, o Bajofondo excursionou incessantemente por todo o mundo, participando dos principais festivais de world music e eletrônica. Ao longo dessas andanças, é natural que o grupo passasse por algumas transformações. O que nos primeiros tempos era apenas uma combinação de programações e samplings com instrumentos acústicos e elétricos, aos poucos foi cedendo lugar a uma sonoridade mais orgânica. O Bajofondo converteu-se numa banda em que praticamente tudo é interpretado ao vivo, com uma porcentagem mínima de seqüências e programações.
E, por também atualmente incorporar elementos do folclore latino-americano em suas apresentações, ao lançar Mar Dulce, a opção foi por excluir do nome da da banda "Tango Club".
Gravado em tempo real, Mar Dulce traz como novidade o fato de todos os integrantes terem tocado juntos no estúdio, como se fosse um grupo de jazz ou rock. O processo foi radicalmente distinto do utilizado no primeiro CD. As cordas foram interpretadas nessa ocasião por um naipe dirigido por Alejandro Terán, à maneira de uma orquestra de tango, com quatro violinos, duas violas e um violoncelo.
Convidados
Para produzir e gravar o CD, o Bajofondo fez um périplo por vários continentes. Trabalharam, é claro, em Buenos Aires e Montevidéu, mas, também, em Los Angeles, Nova Iorque, Tóquio e Madri. Essa multiplicidade geográfica se vê refletida no resultado final, que conta com uma ilustre e variada lista de convidados especiais, que inclui o extraordinário cantor e compositor britânico Elvis Costello, a rapper espanhola Mala Rodríguez, a cantora canadense de origem portuguesa Nelly Furtado, o virtuoso bandoneonista japonês Ryota Komatsu e uma série de artistas "rioplatenses" cujas origens vão da tradição à vanguarda.
Entre os uruguaios, participam desde a grande cantora Lágrima Rios, morta em 2006, no que foi sua última gravação, até o vocalista Fernando Santullo (ex-Peyote Ase sino), grupo do qual também participava Juan Campodónico.
Entre os argentinos, aparecem Gustavo Cerati, que nos anos 80 liderava o Soda Stereo, o grupo de rock mais popular da América Latina, que atualmente segue em carreira-solo; e Juan Subirá, tecladista e compositor do Bersuit, uma banda muito popular de rock argentino, que em Mar Dulce faz uma surpreendente participação como cantor, revelando a outra face de seu talento.



