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Livro

Uma sátira do absurdo século 21

Em Absurdistão, Gary Shteyngart retrata a Rússia como um país onde absolutamente tudo pode acontecer

Gary Shteyngart: estilo rápido, ácido e debochado | Divulgação/Editora Rocco
Gary Shteyngart: estilo rápido, ácido e debochado (Foto: Divulgação/Editora Rocco)

Poucos países se entregaram tão rápida e apaixonadamente às piores características do capitalismo quanto a Rússia que emergiu da falência socialista. À medida que o governo enriquecia às custas de gigantescas reservas de gás natural e petróleo, uma multidão de empresários bem-relacionados passou a nadar em fortunas oriundas de fontes razoavelmente suspeitas, aplicando seu dinheiro em investimentos até então inimagináveis, como clubes de futebol da Inglaterra.

Misha Vainberg, protagonista e narrador do romance Absurdistão, do russo-americano Gary Shteyngart, é um perfeito símbolo dessa extravagância pós-socialista. Judeu nascido em São Petersburgo, filho do 1.238.º homem mais rico da Rússia, ele é enviado pelo pai aos Estados Unidos ao completar 18 anos, logo após o colapso da União Soviética. Aluno da faculdade de Estudos Multiculturais de uma certa Accidental College, o rapaz se torna admirador confesso de virtudes que enxerga em seu novo país, como a democracia, o multiculturalismo e a profusão de psicanalistas, antidepressivos e prazeres sem fim – entre os quais se destacam as prostitutas, o álcool e a abundância de comida gordurosa, como bem testemunham os 145 quilos do personagem.

Ao longo de uma década, Misha curte sua vida de fartura do alto de um luxuoso apartamento em Nova Iorque, nas cercanias do World Trade Center. Convencido de que é um digno representante do multiculturalismo, se apaixona por uma garçonete-stripper latino-americana do Bronx. Rapper amador nas muitas horas vagas, compõe letras de qualidade duvidosa que celebram o poder masculino sobre atributos impublicáveis de mulheres, digamos, disponíveis e sem-cerimônia.

O esplendor chega ao fim em meados de 2001, quando, no meio de suas férias em São Petersburgo, ele descobre que não pode mais voltar à idolatrada terra das oportunidades. Culpa de Boris, seu "Amado Papai" – um típico oligarca russo, que, por motivos não muito claros, mata um empresário de Oklahoma no metrô de Moscou e com isso exclui qualquer nome terminado em Vainberg da lista de cidadãos aceitos nos EUA. O próprio Boris é morto em seguida, deixando como herança "um longo rastro de fábricas falidas, de concessões de gás natural apropriadas indevidamente, da tão falada VainBergAir (uma empresa aérea sem aviões, mas com muitas aeromoças) e, claro, do infame cemitério para os Novos Judeus Russos". Misha também recebe, dos assassinos de seu pai, uma modesta compensação de US$ 35 milhões – não muito em termos europeus, pensa ele, mas que devem garantir uma sobrevivência mais ou menos digna.

A história fica ainda mais surreal a partir do momento em que o herdeiro pega um vôo rumo ao tal Absurdistão, onde poderá adquirir um passaporte belga no mercado negro – e, assim, retornar aos EUA. Minúscula e desconhecida república situada às margens do Mar Cáspio, o Absurdistão é um país abençoado pelo petróleo e, como era de se esperar, entulhado de magnatas e corruptos das mais variadas estirpes. Naturalmente, os absurdistaneses se aproveitam da ingenuidade do pobre Misha, bajulando-o não tanto por ser filho do célebre empresário que vendeu um parafuso de 800 quilos a uma gigante petroleira, mas principalmente por ser um jovem judeu cheio de dinheiro e, supostamente, de boa vontade. A despeito de seu autodeclarado multiculturalismo, Misha tem hilários lampejos de cinismo e preconceito contra judeus, muçulmanos, russos, norte-americanos e demais representantes de etnias ou religiões que lhe aparecem pela frente.

Tal como o fictício país, o livro de Shteyngart – que, não por acaso, tem desfecho na segunda semana de setembro de 2001 – reúne as mais bizarras e estúpidas situações do enlouquecido tabuleiro de xadrez em que o mundo se transformou, graças às encrencas em que grandes potências se metem ao interferir em republiquetas ricas em recursos naturais mas esfaceladas por rivalidades locais. Exemplo disso é que, no Absurdistão, o protagonista se vê em meio a uma guerra civil desencadeada pela queda do avião do ditador local, na qual se envolvem as duas principais etnias do país, cujas diferenças e motivos para briga são quase incompreensíveis. É mais ou menos o que se vê diariamente no noticiário internacional.

Por isso, o estilo rápido, ácido e debochado do texto de Shteyngart – que lembra ícones da literatura pop como o norte-americano Chuck Palahniuk – é mais do que apropriado ao tema. Mas, aplicado à exaustão, corre o risco de anestesiar o leitor e perder um pouco do efeito desejado, deslize não muito raro entre os congêneres do autor. Ainda assim, é diversão garantida, e com qualidade bem acima da média.

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Serviço

Absurdistão, de Gary Shteyngart. Rocco, 336 páginas, R$ 45.

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