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O que está por trás da expansão marítima da China?
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A expansão chinesa não se resume à Nova Rota da Seda terrestre, mas também envolve ampliar seu alcance e seus interesses marítimos. Até a década de 1970, a República Popular da China mal possuía uma marinha de combate, focando seus meios navais na proteção costeira e na aquisição de submarinos soviéticos para defesa.

Dado seu gigantismo territorial e a quantidade de forças regionais, a China, desde o início da dinastia Qing, no século 17, priorizou suas forças terrestres. Eram os senhores da guerra de áreas afastadas do império que ameaçavam o poder central, não alguma frota inimiga.

Esse pensamento continuou no século 20, reforçado pela enorme demografia do país: era mais fácil a China arregimentar um grande exército do que uma custosa marinha moderna. Na última década, isso está mudando a passos largos.

Chifre da África

Em Dezembro de 2008, a China enviou dois navios de combate, mais uma embarcação de apoio e combatentes de operações especiais, para auxiliar nas patrulhas anti-pirataria na costa da Somália. Foi a primeira vez, desde o século 16, que navios militares chineses operaram no Oceano Índico. A pirataria na costa somali, embora tenha perdido força nos últimos anos, teve grande repercussão no século 21, fenômeno que chegou até Hollywood.

O que explica isso é a proximidade da Somália ao Canal de Suez, fazendo com que o Golfo de Aden, onde o Chifre da África chega próximo à Península Arábica, seja passagem quase obrigatória para os grandes navios que ligam Europa e Ásia. Negócio lucrativo para os piratas, dano direto aos interesses chineses, responsáveis por gorda fatia desse fluxo comercial.

É na mesma região que teremos outro ineditismo por parte dos chineses. Em 2017 foi inaugurada a primeira base militar chinesa fora de seu território, no pequeno Djibuti, país cuja posição controla o acesso ao Mar Vermelho pelo sul, formando um “gargalo” de tráfego marítimo. Comenta-se que a base chinesa custou cerca de US$ 590 milhões e ela conta, aos moldes soviéticos, com instalações em sua maior parte subterrâneas.

Claro, esse valor é uma especulação, já que gastos militares sensíveis, ainda mais em um país autoritário, não costumam ser os mais transparentes do mundo. O Djibuti também sedia bases militares dos EUA, da França – sua antiga metrópole colonial -, da Itália e o único posto militar japonês no estrangeiro. Todos com a mesma justificativa: a patrulha da região do Canal de Suez. O valor pago pelas potências como “aluguel” das bases corresponde a 5% do PIB do país.  

A proteção econômica legítima, então, gera uma mudança de paradigma na doutrina militar chinesa, sustentando novas missões para novos desafios. Missões transoceânicas, adestramento de tripulações em situação de combate real, bases distantes. Todos elementos necessários para uma política eficaz de projeção de poder, não mais apenas de defesa de seu território.

Isto gera um impacto doméstico na cultura chinesa. Os dois filmes de maior bilheteria no país não são de franquias mundiais dos EUA, mas duas produções multimilionárias locais sobre a presença militar chinesa na África. Zhan lang II (“Lobo Guerreiro 2”, em tradução livre), de 2017, cuja bilheteria chegou a US$ 800 milhões, e Hong hai xing dong (“Operação Mar Vermelho”), de 2018. As últimas décadas da história dos EUA mostram como filmes de temas militares se relacionam ao fortalecimento da imagem das forças armadas.

Fluxo marítimo da China

A China é a maior exportadora de produtos industrializados do mundo. Isto já está consolidado na imagem popular do país. Qualquer pessoa que vá ao comércio encontrará dezenas de produtos que são, ao menos em alguma parte, originários da China. Este é o primeiro vetor do intenso comércio marítimo chinês, os produtos que são embarcados em portos chineses e carregados para o mundo.

Não se pode esquecer, entretanto, do fluxo contrário. A China é também uma das maiores consumidoras do mundo, especialmente de matérias-primas e produtos agrícolas. Nos últimos cinquenta anos, a China passou por um processo de industrialização e expansão econômica talvez sem precedentes históricos. Sustentar essa economia requer grandes quantidades de petróleo.

Embora o país possua campos de hidrocarbonetos que o colocam como um dos dez maiores produtores de petróleo do mundo, o gigantismo chinês transforma o país também no maior importador de petróleo. O ouro negro, assim como outras matérias-primas, é originário especialmente da Rússia, do Oriente Médio e da África, principalmente de Angola e do Sudão. Exceção feita ao caso russo, todo o restante vem por mar. Ou seja, proteger o fluxo marítimo chinês é também proteger o ritmo de crescimento industrial do país.  

O Colar de Pérolas

Da China continental até o Oriente Médio pode parecer uma distância não muito grande ao olhar um mapa, entretanto, quando pensamos na costa chinesa, a viagem torna-se bem mais longa e complicada. Contorna-se o Sudeste Asiático, passando pelos corredores do Mar do Sul da China e do Estreito de Malaca. Em seguida, o subcontinente indiano força mais uma mudança de trajetória e, finalmente, a península arábica separa os golfos da Pérsia e o de Aden.

Não é uma viagem rotineira. É uma rota que implica a necessidade de uma gama de apoio logístico. Para pequenos fluxos mercantes, os serviços portuários de nações amigas é mais do que suficiente. Não é o caso chinês; pela quantidade de navios, de cargas, pelas relações entre as empresas marítimas e o Estado chinês e pela crescente necessidade de acompanhamento militar.

Para contornar essa situação, a China têm um projeto simultâneo à sua “Rota da Seda” marítima, uma rota comercial entre o país e a Europa. O chamado Colar de Pérolas, termo cunhado pelo Departamento de Defesa dos EUA na década passada. O Colar é composto por quatro portos em águas reivindicadas pela China e por uma dezena de portos em território estrangeiro. Em teoria, são portos civis, porém, construídos com capital, empresas e administração chinesa, em concessões governamentais.

O importante porto de Hong Kong é ligado às ilhas do Mar do Sul da China no primeiro trecho. De lá, segue para o Camboja, Tailândia, Mianmar, Bangladesh, contorna a Índia via o Sri Lanka e as ilhas Maldivas, seguindo para o Paquistão e de lá para a África. No golfo de Aden o Colar entra em “bifurcação”, com portos chineses no Sudão, no Djibuti e no Quênia.     

A retórica chinesa é, novamente, de que são portos comerciais, projetos feitos em comum acordo. A realidade, entretanto, mostra-se diferente. As ilhas Coco, de Mianmar, são, na prática, uma posse militar chinesa. Do porto sudanês desembarcaram tropas chinesas para participar de missões de paz da ONU.

O caso mais visível, e suspeito pelos EUA, é o do Sri Lanka, onde a China construiu um porto moderno e caro em uma região que não possui absolutamente nenhuma necessidade portuária. Por “coincidência”, o porto atende diversos requisitos para operar navios da marinha militar chinesa. O Colar de Pérolas, ao que tudo indica, é uma sequência de bases militares para pronto apoio do comércio marítimo chinês e de seus interesses geopolíticos.  

Disputas territoriais

Outro ponto importante é que a China está envolta em disputas territoriais diretamente relacionadas ao Colar de Pérolas. Um deles, talvez o mais conhecido, é o do Mar do Sul da China. O governo chinês, desde o final da Segunda Guerra Mundial, adota uma política de reivindicação de territórios anteriormente pertencentes à dinastia Qing; essa foi, por exemplo, a justificativa para a anexação do Tibete, possessão chinesa até 1912.

E também é a justificativa para as tensões fronteiriças com a vizinha Índia, que, não por coincidência, é contornada pelo Colar de Pérolas. Essa política merece mais atenção no futuro, entretanto, o foco no tema marítimo é a chamada Linha dos Nove Traços. Basicamente, um traçado em que a China afirma ter propriedade sobre grande porção marítima ao sul de seu território. Isso coloca o país em rota de colisão com os vizinhos da região, cada um desejando para si uma porção dessas águas.

Os vizinhos são Brunei, Malásia, Indonésia, Filipinas, Vietnã e também a República da China, normalmente chamada apenas de Taiwan. Essa disputa se dá apenas por orgulho nacional? Longe disso, o Mar do Sul da China é importante por três motivos. Primeiro, a exploração de pesca e de outros recursos na zona econômica exclusiva de cada país; segundo, a possibilidade de exploração de hidrocarbonetos, como petróleo.

O terceiro e principal motivo é o fato de ali ser o local de maior tráfego marítimo do mundo. US$ 5 trilhões em produtos trafegam por ali anualmente, tornando a região uma mina de ouro para o fornecimento de serviços portuários e de logística. Para os chineses, existe ainda um quarto motivo: a posse das ilhotas e recifes da região, como as ilhas Spratly e Paracel.

Nestas rochas, que sequer são ilhas propriamente ditas, a China está construindo ilhas artificiais, dotadas de pistas de pouso, mísseis e guarnições. Basicamente, bases militares no meio do mar. O Departamento de Estado dos EUA chama essa política de Grande Muralha de Areia, o estabelecimento de postos militares que serviriam para proteger as águas territoriais chinesas e impor seus interesses.

A superpotência

Os EUA são o principal antagonista dos interesses navais chineses. Por exemplo, defendem que o Mar do Sul da China seja considerado um local de águas neutras, com liberdade de navegação. Desde o final da Primeira Guerra Mundial, a marinha dos EUA é a senhora dos oceanos, a principal potência marítima do mundo. A ascensão chinesa como a potência terrestre eurasiana, substituindo a Rússia, pode colocar os dois gigantes em colisão no futuro.

É com esta possibilidade em mente que a China busca maior desenvolvimento naval e capacidade de projeção de força. Uma marinha de águas azuis, com capacidade oceânica, em contraste ao que é chamado de marinha de águas marrons, uma força naval de defesa costeira. Em tonelagem, a marinha chinesa já é a segunda maior do mundo. O país tem passado por um enorme e caro processo de adequação de seus equipamentos.

A China desenvolve novos e mais capazes submarinos nucleares, além de contar com vasta gama de navios de apoio logístico para missões de grandes distâncias. O exemplo mais nítido foi o novo porta-aviões chinês, recém-lançado ao mar. Embora baseado em um antigo desenho soviético, ele foi totalmente construído e desenvolvido na China, com tecnologia local. E um porta-aviões não é uma arma defensiva, é um equipamento de projeção de força, de defesa dos interesses chineses em águas distantes. No oceano Índico, no Mar Mediterrâneo e também, num futuro nebuloso, na costa da Califórnia.    

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