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O ator, comediante e candidato presidencial Volodymyr Zelensky, 31 de março. Foto: Genya Savilov / AFP
O ator, comediante e candidato presidencial Volodymyr Zelensky, 31 de março. Foto: Genya Savilov / AFP| Foto:

As eleições presidenciais na Ucrânia vão para o segundo-turno entre um comediante e o atual ocupante do cargo. O país é um regime semi-presidencialista, em que o presidente detém poderes de fato, com o primeiro-ministro responsável pelos assuntos mais “mundanos”; algo similar ao modelo francês. Certamente Putin conhece alguns detalhes a mais do que o que é sabido publicamente, porém, as eleições ucranianas caminham para um cenário que deixará muitos analistas perdidos ou com receio de diagnósticos.

Compareceram cerca de 63% dos eleitores. Uma informação importante é que cerca de 12% do eleitorado ucraniano não participou das eleições. É a proporção dos eleitores que residem em áreas controladas por separatistas pró-Rússia, na fatia oriental do país, e na Crimeia, anexada pela Rússia. Por conta também disso, as eleições parlamentares, previstas para Outubro, elegerão apenas 424 da Rada, o congresso unicameral do país. O seu número habitual é de 450 cadeiras.

Um ator Servo do Povo

Em primeiro lugar, com cerca de 30% dos votos válidos, ficou Volodymyr Zelensky. Nunca ouviu falar nele? Tudo bem, até pouco tempo atrás quase ninguém conhecia. Ele é um ator, diretor e produtor de televisão de 41 anos de idade, estrela da série Sluha Narodu, traduzida como “Servo do Povo”, aproximadamente. Na série, de três temporadas, ele interpreta Vasyl Petrovych Holoborodko, um professor escolar ucraniano que vê viralizar um vídeo seu criticando a corrupção do país. Como resultado, ele é eleito presidente.

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Eleito na série, ao menos por enquanto. Inspirado pelo imenso prestígio que o programa ganhou, Zelensky fundou o partido que carrega o mesmíssimo nome de sua série e anunciou candidatura. Está em primeiro. É algo como se os EUA elegesse Martin Sheen, o presidente Josiah Bartlet da série West Wing. Ou Kevin Spacey, o Frank Underwood de House of Cards. No Brasil seria Leandro Hassum, o João Ernesto Praxedes? Não temos muitos presidentes memoráveis da ficção, Odorico Paraguaçu queria apenas ser prefeito.

Não é a primeira vez que uma personalidade televisiva ganha os holofotes eleitorais, quanto mais em tempos recentes, com o descrédito da política chamada tradicional; como se um político forasteiro fosse menos político por isso. O comediante Jimmy Morales na Guatemala está terminando seu mandato presidencial, sem falar em uma miríade de cargos em legislativos ou regionais. Até ídolo da luta livre já foi eleito governador nos EUA.

O que torna o caso ucraniano curioso e que estimula interesse e perguntas é a posição do país na geopolítica mundial. A plataforma do partido segue a fórmula do atual populismo que reverbera pelo mundo. A fórmula, entretanto, conflita com duas realidades ucranianas: o nacionalismo e o desejo pró-Europa. Os populistas europeus já conhecidos, como Orbán e Le Pen, buscam, em suas visões, reforçar um sentimento nacional que estaria adormecido por ser reprimido pelas instituições europeias que, por sua vez, devem ser rechaçadas.

Na Ucrânia ocorre o exato contrário. O nacionalismo está em alta, em altíssima, incluindo manifestações explícitas e abertas da identidade nazifascista de certos movimentos, como o Batalhão Azov e o resgate da valorização dos ucranianos que colaboraram com os nazistas na Segunda Guerra Mundial por um suposto nacionalismo anti-soviético, que hoje é travestido de um sentimento anti-Rússia.

Encruzilhada entre Europa e Rússia

Ao mesmo tempo, essa parcela da população que é nacionalista, em maior ou menor grau, e anti-Rússia é pró-União Europeia. Deseja se unir à organização de Bruxelas como uma forma de se livrar das amarras econômicas, históricas e culturais com a Rússia. A ideia de que a Ucrânia é um país europeu “legítimo”, e não um suposto “quintal” da Rússia, um país eurasiano. Enquanto na Hungria a bandeira nacional e a bandeira europeia são vistas como antagônicas, na Ucrânia elas são desfraldadas junto.

Isso é explícito nos protestos que derrubaram o governo Viktor Yanukovych em 2013. O presidente era tido como um corrupto fantoche russo e a os protestos que tomaram forma foram chamados de Euromaidan, “Praça da Europa”. E é importante lembrar de que esses são os desejos ucranianos, mas ainda não são realidade. A Ucrânia depende do gás e do petróleo russos. Mais que isso, o trânsito desses hidrocarbonetos entre a Rússia e a Europa Ocidental gera dividendos para os ucranianos.

A construção do duto Nord Stream II, que vai ligar a Rússia diretamente à Alemanha via o Báltico, significará considerável perda econômica de royalties para os ucranianos. A Rússia é o maior parceiro comercial ucraniano, de longe: tanto o maior destino de exportações ucranianas quanto a principal fonte de importações. Além disso, uma entrada ucraniana na União Europeia seria um processo demorado.

Antes de tudo pois o país é, para padrões europeus, gigantesco. A Ucrânia é o maior país localizado exclusivamente em território europeu; a Rússia é um país transcontinental e a França supera a Ucrânia em alguns quilômetros caso contemos suas posses ultramarinas. A população ucraniana, cerca de 42 milhões de pessoas, é maior que a da Polônia e quase três vezes a dos Países Baixos. Incorporar um colosso desses na organização não seria tarefa fácil.

A Ucrânia também teria que passar por uma série de medidas internas de adequação, como leis contra corrupção e abertura econômica, um processo tipicamente demorado. Outros países estão na frente da “fila”, como os balcânicos Montenegro, Macedônia e Sérvia. Finalmente, a rápida expansão da UE no início do século causou distensões e traumas, origem de diversos problemas atuais, como aspectos fiscais e nacionalistas. A UE não tem capital político para uma expansão desse tamanho em curto prazo.

Isso significa que o novo presidente ucraniano precisará equilibrar o desejo da população pela Europa com a realidade dos laços com a Rússia. Um equilíbrio extremamente delicado e marcado por uma anexação territorial e um conflito que se arrasta por anos. Se aproximar demais da Rússia pode ocasionar um desgaste com o eleitorado; se distanciar demais, mais problemas econômicos que, no fim, resultam em mais desgaste com o eleitorado.

A Ucrânia precisa desse equilíbrio para, caso assim deseje, no médio e longo prazo, de forma gradual, entrar na UE e se desvincular dos laços russos. Sem grandes rupturas traumáticas. E como o primeiro colocado, Zelensky, vai manter esse equilíbrio? Aí que está, ninguém sabe. Talvez nem ele. O segundo turno da eleição certamente girará em  torno de Petro Poroshenko, atual presidente, batendo na tecla da incógnita que seria seu concorrente, que a Ucrânia correria riscos de aventuras complicadas. Em algumas semanas saberemos se deu certo.

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