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Um bicitaxi com a bandeira americana em Havana, 17 de abril. Foto: Yamil Lage / AFP
Um bicitaxi com a bandeira americana em Havana, 17 de abril. Foto: Yamil Lage / AFP| Foto:

Você já ouviu falar da Lei Helms-Burton, dos EUA? Provavelmente não, mas agora é interessante saber do que se trata, já que o governo Trump iniciou uma política de mais sanções contra Cuba. Com o nome dos dois políticos republicanos que a propuseram, a lei foi aprovada em 1996 e, resumidamente, expande a jurisdição onde o embargo dos EUA contra Cuba se aplica. Ele permite que o sistema judiciário americano recepcione processos contra empresas estrangeiras que realizem negócios em Cuba se envolvendo de qualquer maneira com propriedades dos EUA que tenham sido confiscadas após a revolução de 1959 ou que fossem propriedade de cidadãos dos EUA, mesmo cubanos naturalizados. Isso possibilitaria a cobrança de indenizações e compensações pelos EUA e seus cidadãos.

Se a lei é de 1996, ela não deveria estar no cerne da discussão atual, porém, quando ela foi aprovada, gerou uma imensa reação negativa internacional. Países e organizações que possuem relações comerciais e econômicas com Cuba protestaram contra a legalidade da lei, afirmando que ela viola acordos internacionais de comércio e a soberania dos países. Basicamente, na visão de Canadá, União Europeia e outros, os EUA estariam tentando cobrar de terceiros as suas desavenças com Cuba. Para evitar retaliações e um inferno jurídico, desde então todos os presidentes dos EUA adiaram que alguns artigos da lei entrassem em vigor.

Oportunidades de negócio em Cuba

Algo parecido ocorria sobre a lei que reconhecia Jerusalém, que era constantemente adiada, até que Trump decidiu não renovar o adiamento. O que se repetiu agora, com o seu conselheiro de segurança nacional, John Bolton, anunciando que a lei passará a vigorar no dia dois de maio. Os protestos internacionais já vieram. Quando se fala de Cuba no Brasil é importante lembrar que a ilha possui um protagonismo e uma passionalidade no debate político brasileiro que não é acompanhado no restante do mundo. Aqui a ilha do regime Castro é vista ou como um paraíso ou como o parâmetro de todo o mal que deveria ser evitado, vide os slogans de “o Brasil não será Cuba” e coisas semelhantes.

Para uma série de governos, entretanto, Cuba significa apenas uma coisa: um ótimo prospecto de investimentos. Mais de dez milhões de potenciais consumidores e mão de obra qualificada; um enorme potencial tanto turístico quanto logístico, com belas paisagens, locais históricos e uma localização privilegiada central ao Caribe, ao golfo do México e ao canal do Panamá; espaço para investimentos em outras áreas também, como de produtos de luxo, como charutos, energia e manufaturas. Por exemplo, uma usina movida a gás natural para gerar 600 megawatts está sendo construída pela francesa Total e pela alemã Siemens. A espanhola Meliá é presente na área hoteleira e empresas russas estão renovando a malha ferroviária da ilha.

Não se trata de ignorar o caráter autoritário do regime cubano e suas violações de direitos humanos, mas, oras, por essa lógica, que se interrompa todo e qualquer intercâmbio econômico com a China ou com os sauditas, por exemplo. São oportunidades econômicas para possíveis ganhos mútuos. Além disso, um dos pilares liberais é o da “força civilizadora do comércio”, nas palavras de Tocqueville; quanto mais comércio entre as nações, menos tensões entre elas e dentro delas, e mais paz. Governos isolados tendem a serem ainda mais rígidos em suas políticas e usam esse mesmo isolamento imposto pelos outros como um escudo contra seus opositores e críticos.

Olhos em 2020

No caso específico cubano, por décadas o antagonismo dos EUA foi uma excelente arma de propaganda para o regime. A derrotada invasão organizada pela CIA da Baía dos Porcos, as tentativas de assassinato contra Fidel Castro, o embargo econômico; os EUA serviram de excelente bode expiatório. Inclusive, o anúncio de Bolton foi feito em um evento de aniversário da invasão da Baía dos Porcos. Já o momento atual é de crescimento de investimento estrangeiro, por uma soma de dois fatores: a reaproximação entre Cuba e EUA, no governo Obama, e as reformas internas cubanas, com um novo governo e uma nova constituição que estabelece a abertura econômica e investimentos privados, inspirada no modelo vietnamita, uma das economias que mais cresce no mundo.

Ainda em 2016 a chefe da diplomacia da UE Federica Mogherini assinou acordos com Cuba; ela e autoridades cubanas tiveram diversos encontros bilaterais. Por isso que o anúncio do governo Trump já foi recebido com protestos e ameaças de represálias contra investimentos dos EUA. Em carta, Federica Mogherini disse que isso pode iniciar “um ciclo autodestruidor de litígios” e vai além ao lembrar que “deve-se notar que a grande maioria dos 50 maiores denunciantes (empresas dos EUA), que respondem por 70% do valor total das reclamações registradas (contra Cuba), tem ativos na UE”. México, Reino Unido e Canadá também declararam que pretendem preservar seus interesses.

A questão é que Cuba é o último dos focos dessa ação do governo Trump. Seus alvos são outros. As sanções são colocadas em um contexto de aumentar a pressão sobre a Venezuela, que possui relações próximas com Cuba; para Washington, são os agentes e a inteligência cubana que possibilitam Maduro ainda estar no poder. O ato, inclusive, pode abrir caminho para mais ações contra a Citgo, empresa de combustíveis do Texas de propriedade da Venezuela. Segundo, as relações com a Europa não são o maior foco da vida de Trump, para ser gentil. Ao contrário, Trump considera as relações comerciais com a Europa injustas, bem ao seu estilo.

Em um contexto de retomada de negociações para um acordo de livre comércio, o TTIP, Trump agora pode ter uma maneira de pressionar a Europa. Também ao seu estilo. Finalmente, o único local onde Cuba é tão central no debate político quanto no Brasil é a Flórida, onde residem milhões de cubanos e descendentes, além de outros latino-americanos. Historicamente, a comunidade cubana nos EUA é republicana, seja por serem descendentes dos cubanos que apoiavam a ditadura de Fulgêncio Batista, ou por serem anti-Castro que fugiram da ilha. O exemplo mais visível dessa importância eleitoral da comunidade cubana é o senador Marco Rubio da Flórida, que tentou ser o candidato presidencial republicano em 2016 e certamente tentará novamente no futuro.

Pressionar Cuba é uma maneira de Trump de agradar as alas anti-Castro de seu partido e fidelizar o eleitorado cubano, especialmente na Flórida. Outro exemplo recente do governo Trump é o cancelamento do acordo que permitia a contratação de jogadores da Federação Cubana de Beisebol por equipes da liga americana do esporte. Sob a justificativa de não financiar regime do país por vias indiretas, via remuneração e contratos de jogadores, Trump força que jogadores eventualmente interessados em jogar nos EUA tenham que desertar, da maneira que sempre ocorreu. O ato implica um golpe na imagem do regime cubano e em valorizar os que já desertaram do regime, sejam atletas ou não.

A Flórida é um dos swing state nas eleições dos EUA, os estados que são menos previsíveis em suas escolhas e podem decidir uma eleição; para tornar as previsões ainda mais difíceis, o estado, via referendo, restaurou os direitos eleitorais de mais de um milhão de pessoas que possuíam registro criminal. Mais de um milhão de possíveis novos votos em uma eleição habitualmente já apertada. Em uma tacada só, o anúncio de Trump pressiona as relações com a Europa, cutuca a Venezuela e aumenta sua presença na Flórida. Em 2016, ele levou os 29 votos do estado no colégio eleitoral por uma diferença de apenas 113 mil votos. Os olhos de Trump não estão em Havana em 2019, mas nas urnas em 2020.

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