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“Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens (…) [O] medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a ‘Razão da Idade’. Somos autores de impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total” (Nélson Rodrigues, O Globo, 14/01/1968).

Beijing, junho de 1966. As atividades escolares são suspensas em todo o país. “As aulas devem parar” – ordena o líder. “Alimentem a juventude. Alimentada, terá energia para se rebelar. E o que se espera dela além disso?”. No dia 18, na universidade local, professores e funcionários são arrastados e exibidos diante de uma multidão de jovens, adolescentes e crianças, que os ofendem com os termos recém aprendidos: – Reacionário! Fascista! Têm os rostos pintados de negro, e chapéus de burro na cabeça. Obrigados a se ajoelhar, passam a ser agredidos inclementemente. As mulheres são sexualmente violentadas.

Em 5 de agosto, numa escola feminina não muito longe dali, registra-se o primeiro de muitos casos de morte por tortura. A diretora, cinquenta anos de idade e mãe de quatro filhos, é chutada e pisoteada por um bando de meninas da Guarda Vermelha, que em seguida cobrem-na com água fervente. Ordenam-lhe que carregue pilhas de tijolos para lá e para cá: – Fascista! Reacionária! Toda vez que tropeça, apanha de cinto, com fivela na ponta; ou de vara, cravejada com pregos. Não demora muito a tombar e morrer.

Assim começou a Revolução Cultural maoísta, um movimento de jovens impulsivos e idealistas instigados por velhos cínicos e maquiavélicos. Ao longo dos anos anteriores, esses jovens vinham sendo lisonjeados pelos donos do poder. O futuro glorioso lhes pertencia, diziam-lhes. Seria obra sua. Mas, para isso, cabia-lhes a missão de se livrar do passado, da China reacionária e atrasada que impedia a aurora do novo homem. Aquela diretora de escola, e tantas outras vítimas subsequentes, eram o passado encarnado, um obstáculo à China do futuro. Ao serem mortas, já não eram propriamente pessoas, mas ideias. “Não foi uma criatura humana que matei, mas um princípio” – diz celebremente Raskolnikov em Crime e Castigo, obra premonitória de Dostoievski. Não importavam o sangue vertido, a carne dilacerada, o olhar de pânico que logo se embaça. Tudo eram ideias. Os guardas vermelhos eram ideias virtuosas. Suas vítimas, monstruosas.

A seis mil quilômetros dali, outra revolução cultural toma corpo. Igualmente inflamados por velhos gurus (muitos dos quais, como Sartre, Althusser e Foucault, simpáticos ao maoísmo), e buscando alternativas a uma rotina de tédio, os jovens franceses lutam contra o passado “reacionário” e “fascista”. Se bem que jamais tenha chegado perto da violência da outra, muitos de seus protagonistas a têm por modelo. Movimentos maoístas tais como Esquerda Proletária, Humanidade Vermelha e Nova Resistência Popular entregam-se a toda sorte de radicalismo, lançando mão de operações de guerrilha, sequestros e tribunais revolucionários. Em 31 de outubro de 1969, lê-se no semanário La Cause du Peuple (A Causa do Povo): “Patrões infames, cuidem-se! Quando quisermos, unidos, vamos sequestrá-los, tratá-los com o desprezo que merecem e exibi-los em praça pública, primeiro pendurados pelos pés e em seguida, caso não tenham entendido, nós os enforcaremos”.

Sempre engajado (ou engaiolado) em seu tempo, Jean-Paul Sartre, um daqueles velhos gurus, milita ativamente pelo maoísmo. Nas avenidas e bulevares, levando madame de Beauvoir a tiracolo, vende exemplares de La Cause du Peuple, do qual foi diretor de redação entre 1970 e 1971. Nas portas das fábricas, do alto dos tonéis, discursa para os trabalhadores. Em fevereiro de 1973, pontifica em entrevista à revista Actuel: “Um regime revolucionário deve desvencilhar-se de alguns indivíduos que o ameaçam, e para tanto não me ocorre outro meio que não seja a morte. Afinal, sempre se pode sair de uma prisão. Os revolucionários de 1793 não devem ter matado o suficiente”.

Havia, é claro, muito de pose e farsa na retórica sartreana, tão típica do inconsequente abstracionismo intelectual francês. Embora o maoísmo, exaltado nas telas por Jean-Luc Godard, tenha sido uma forte inspiração para o Maio de 1968, a revolução aí pretendida dizia menos respeito a mudanças na estrutura política da sociedade, ou à tradicional luta de classes, e mais àquilo que, inspirado no movimento situacionista de Guy Debord, passou a ser conhecido desde então como “política da vida cotidiana”, tendo por meta, antes que a tomada do poder de Estado, uma profunda mudança nas relações interpessoais e nos valores culturais. Recorde-se que os baby boomers eram a primeira geração da história livre das carências materiais experimentadas por seus antepassados. Nascidos nos Trinta Gloriosos – os trinta anos (1945-1975) de prosperidade econômica que se seguiram à Segunda Guerra –, os jovens da classe média francesa não precisaram entrar imediatamente no mercado de trabalho, dispondo de tempo ocioso e suporte familiar para entregar-se aos estudos, especulações imaginativas e prazeres da vida. Mimados, a universidade tornara-se a sua nova casa. Se, na década de 1950, eram cerca de 150 mil os jovens frequentando as universidades e escolas superiores, no começou da década seguinte esse número já chegara a 250 mil, e, pouco tempo depois, no fatídico “ano que não terminou”, a espantosos 500 mil. Sim, em coisa de menos de uma década, o número de jovens universitários dobrou na França.

Ali, as hierarquias passam a ser amaldiçoadas. A distinção entre mestre e aluno ganha ares de intolerável arcaísmo. Sartre, sempre ele, com sua obstinada recusa à maturidade moral, propõe que os professores sejam eleitos pelos alunos, que deverão também compor as comissões examinadoras. Nos muros da universidade em Nanterre, lê-se: “Professores, os senhores são velhos, e a sua cultura também”. Adulada por uma condescendência quase universal, a impetuosa arrogância da juventude dispara sem freios. É fenômeno cultural inédito na história humana: os mais jovens passam a mandar nos mais velhos, que se acovardam.

Reacionário! Fascista! – gritam, como os guardas vermelhos, os soixante-huitardistas. Mas o espectro de seu professado antifascismo alargou-se consideravelmente. Fascista agora é todo aquele, ou aquilo, que impõe restrições à sua personalidade, disciplina sua sexualidade, ou limita a sua autossatisfação egotista. A moral, as instituições tradicionais, a cultura clássica, as formas da estética burguesa, o policial, o padre, o professor, o pai, a mãe… tudo, enfim, é potencialmente digno do epíteto. Sob o pretexto do antifascismo, e embebidos em sentimentalismo romântico, os jovens parisienses tornam-se autoindulgentes e, pois, destrutivos.

Exatos cinquenta anos depois do ruidoso Maio de 1968 parisiense (muito barulho por nada, diga-se), a mesma destrutividade pode ser observada nas universidades brasileiras, povoadas por revolucionários saudosistas, que continuam transmitindo a seus descendentes culturais os mesmos topoi da época, com sua tradicional mistura entre radicalismo ideológico e busca por autossatisfação libidinal, entre Mao Tsé-tung e Herbert Marcuse. Projetando ressentimentos e frustrações pessoais sobre a esfera da política, nossa extrema-esquerda acadêmica segue usando o simbolismo do antifascismo, de modo cada vez mais artificial e distante das experiências histórias concretas que o originaram, para justificar sua própria intolerância e violência políticas contra desafetos. Por vezes, chegamos a ter a impressão de que, tivessem poder para tanto, não agiriam diferente da Guarda Vermelha.

Hoje mesmo, em discussão pelas redes sociais sobre a intolerância da extrema-esquerda acadêmica, fui interpelado por um jovem militante: “Vou debater pra que (sic)? Vocês não tem (sic) nada a me acrescentar, não levo vocês a sério e não acredito na possibilidade de vocês alterarem a perspectiva política de vocês. O único debate que eu gostaria de ter com vocês é aquele que se fez, por exemplo, na França em 1789 e na Rússia em 1917”. Mal sabe o pobre que, se vivesse na época, seria logo empalado pelos jacobinos. Lenin o faria de papel higiênico. Em nossos dias, jovens revolucionários como esse choramingam ao primeiro sinal de gás lacrimogênio ou spray de pimenta lançados pela polícia, implorando pelas garantias individuais “burguesas”. E só saem para fazer a revolução após derrubarem duas tigelas de sucrilhos.

Eternos adeptos do culto sentimentalista à juventude – que, do fascismo ao maoísmo, passando pelo nacional-socialismo, foi o berçário dos horrores do século mais sangrento da história –, aos membros dessa esquerda causa dor a percepção de que, apesar de terem feito tudo o que fizeram (como nos diz a canção tão famosa quanto piegas), ainda são os mesmos, e continuam vivendo como vivem os pais. Para quem cresceu imaginando-se moralmente superior a todas as gerações passadas, deve ser mesmo uma constatação dolorosa e humilhante. Para o restante de nós, trata-se apenas da vida como ela é.

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