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Por que não há espelhos nos banheiros da Justiça? Com as mãos, procura por cortes no rosto, algum inchaço; nada. Precisava ter certeza, não pode arriscar. Terá de se virar com a dor na costela. E os xingamentos.

Caminha pelo corredor do desprezo, inclusive de seus advogados. Não imaginava seriam tantos, algo não parece certo, mas não há tempo para pensar nisso. Um dos policiais o empurra para a sala de audiência. A costela lateja e a expressão é de dor sincera. Agora é mantê-la até o fim.

A juíza só não sente mais medo porque seu nervosismo o vence. Sua voz falha, o olhar escapa toda vez que ele a encara. É impressionante quanto poder ainda tem em suas mãos. Sente-se ainda mais tranquilo, está no controle, como se fosse ele a julgar.

“Em quais circunstâncias o senhor foi preso?”

Um murmúrio não ecoa pela sala, a juíza pede para que fale mais alto ao microfone.

“Eu tô com muita dor na região das costelas, pulmões, eu não tô conseguindo falar muito alto. É… Fui preso depois de um certo incidente…” A palavra certa bem encaixada, precisa apenas repeti-la mais vezes: incidente. “… Ali fui espancado bem, mesmo dominado pela polícia. Alguns militantes do… da outra pessoa”.

A juíza o interrompe novamente, pedindo para que fale mais alto. A tudo repete, acrescentando: “Eu fui bem espancado na região abdominal, pernas, enfim, costelas”.

“O senhor foi espancado pelos… pela população que estava ali?”

“Pelos militantes.”

A juíza repete o termo. Está se saindo melhor do que imaginava. Incidente, espancado, militante. Nada sobre o antes, somente sobre aquele agora e o depois. A vítima era ele, assim que tinha de ser e será. O mais difícil já fez.

“Por parte da polícia o senhor sofreu maus tratos?”

“Um ou outro policial assim, bem autoritário, né?” Sorri por dentro, outro termo bem encaixado.

“O senhor se sentiu ameaçado de alguma forma no Ceresp [Centro de Remanejamento do Sistema Prisional]?”

“Dentro da cela, não, pelo contrário. O pessoal que estava ali dentro é um pessoal muito humano, entendeu?”

Não percebe, mas se sente tão à vontade que perdeu a pose de vítima humilde. Cotovelos sobre a mesa, a voz aumenta sem esforço, as mãos acompanham o discurso, cada vez mais desenvolto e sem alteração da voz, sem exagerar na reclamação, queixando-se do que chamou de chefe dos policiais locais: “Me chamou de bicha, de viado, disse que ia me colocar numa cela para ser estuprado por um negão, disse que eu tinha tentado matar os sonhos dele, o presidente dele, né…”

“Matar os sonhos dele.” Orgulha-se de colocar sua expressão favorita na boca do inimigo. Seus sonhos continuam vivos e ele agora é um de seus heróis-mártires. A juíza se desconcerta, pigarreia, parece não saber o que dizer e aos tropeços pergunta: “Alguma coisa a mais que o senhor gostaria de relatar com relação à prisão do senhor?”

Era hora de ganhar mais credibilidade. Elogia o delegado da Polícia Federal. Hora de os advogados perguntarem. Querem que confesse, diga sua motivação. A juíza tenta evitar, diz não ser o momento. Quem estava ali para defendê-lo? Seu olhar voa dos advogados para a juíza, a mão sobre a boca, incerto do que responder, em quem confiar. Sabia que estaria sozinho, mas precisavam agir contra ele?

“Um incidente, um imprevisto, que terminou, digamos assim, de forma problemática…” Tenta ganhar tempo, pensar no que dizer. Manteve como incidente, mas imprevisto? Sente o controle escorregar de suas mãos. Será que entenderiam o “forma problemática”?

“… discordância em certos pontos, correto? Diferentes pontos… É… Digamos assim, não saberia nem expressar, mas… O fato ocorreu, entendeu? Houve um ferimento, pretendíamos…”

Não!, não no plural! Quantas vezes não treinou isso? Mas não se deu conta do que disse e seguiu adiante: “… pretendíamos ao menos dar uma resposta, um susto, algo assim dessa natureza, entendeu? Houve, aconteceu”.

“Vou reformular”, disse o advogado de defesa (de quem?) “O viés é político e religioso?”

Agora, sim, o combinado. Reassume o controle: “As duas coisas, eu diria. As duas coisas, entendeu? Porque eu, como milhões de pessoas, pelo discurso da pessoa referida, me sinto ameaçado, literalmente. Entendeu? Me sinto ameaçado como tantas milhões de pessoas pelos discursos que o cidadão tem feito. Aquela certeza de que cedo ou tarde vai cumprir aquilo que tá prometendo tão veementemente pelo país todo contra pessoas como eu, exatamente”.

“O senhor tem algum receio de permanecer no Ceresp hoje?”

“Se fosse depender dos internos, não. Mas da maior parte dos agentes aí já é aquela intimidação constante, na provocação, que vai na porta da cela, mesmo quando eu cheguei de madrugada e fala algumas coisas, bate-boca, e se posiciona politicamente muitas vezes ao lado da outra pessoa, entendeu?”

Entendemos.

Vem a pergunta sobre o uso de remédios psiquiátricos, seguida da resposta combinada. Enquanto a juíza, procuradora da República e advogados debatem questões técnicas, ele repassa mentalmente suas respostas, ficando satisfeito.

Imagina quais serão os próximos capítulos e sente outra pontada, mas não na costela. Lembrou-se dos quatro celulares e do notebook deixados no quarto da pensão. Seriam capazes de recuperar os dados? Não crê, afastando logo os maus pensamentos com a coragem de poucos: “aceito as consequências, venha o que vier”. A única coisa que realmente lamenta é que o outro parece que sobreviverá. Isso, sim, é intolerável.

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