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Em época de Copa e eleição presidencial quem não se acha comentarista esportivo e analista político nem gente é. Impossível não dar palpite, convencer-se do acerto absoluto da própria opinião, discutir com quem discorda e por aí vai. Eu me divertia antigamente, quando todo púlpito era no máximo uma mesa de bar e os demais técnicos e analistas eram todos amigos ou da família. Aí o “face à face” impedia brigas mais graves. Quando as coisas começavam a esquentar demais sempre tinha alguém para apaziguar, fazer uma piada e evitar que a coisa descambasse.

Mas com as redes sociais toda urbanidade foi perdida. Não existe mais a turma do “deixa disso”, pelo contrário, o que mais tem são incendiários que ficam à postos como abutres e hienas ao menor sinal de treta. Os conflitos foram potencializados à tal ponto que temos um problema de sanidade pública. E nem me refiro à quantidade de amizades desfeitas e almoços de família destruídos. Se a amizade é verdadeira e há amor em família o tempo há de acalmar as coisas e permitir o reaproximar entre as pessoas. Falo é da raridade de diálogos honestos e da impossibilidade de qualquer debate razoável, mesmo com amigos e familiares. Quem aí não bloqueou ou silenciou um amigo ou parente que me desminta se eu estiver errado.

Já citei nesse espaço, mas volto a citar e desconfio repetirei muitas outras, a definição de guerra dada por Eugen Rosenstock-Huessy em sua obra-prima A origem da linguagem: “Podemos definir a guerra, em termos de linguagem, como uma situação em que não escutamos o inimigo porque estamos demasiado sensíveis a qualquer rumor ou murmúrio dentro de nosso próprio grupo.” É precisamente o que estamos vivendo. Seja lá qual for o lado ou grupo com que você se identifica, observe-se e repare se você não está e o quanto está hipersensível a qualquer “notícia” que venha de pessoas com as quais você já concorda. Ou vai me dizer que nunca encaminhou alguma mensagem denunciando algum horror sem minimamente checar se foi daquele jeito mesmo?

Ontem mesmo recebi de várias pessoas uma “denúncia” de que a última pesquisa do Datafolha não teria sido registrada no TSE porque o número informado em uma reportagem não aparecia no site do TSE. Claro que o denunciante concluiu na hora que “só poderia” ser manipulação, mentira, sem sequer parar para se perguntar se não teria sido mero erro de digitação ou equívoco do repórter com o número de registro ou até erro no sistema de busca do TSE, que foi o caso mesmo. Bastaria ter procurado no sistema sem indicar o número que ela apareceria e com o mesmo número informado na reportagem. Mas, hipersensível à aparência de algo, já saiu concluindo e espalhando e os que receberam, por sua vez, tão hipersensíveis quanto, saíram compartilhando. Não é preciso dizer o quanto a epidemia das chamadas fake news é consequência desse estado de guerra, literalmente.

Mas qual seria uma possível solução antes que cheguemos à etapa final de toda guerra, que é a luta armada? Segundo Rosenstock-Huessy na obra referida, o remédio para a guerra é a paz. E se a guerra é uma espécie de surdez, então a paz só pode ser uma “disposição para escutar”. O surgimento dos chamados fact checkers, ao menos em tese, significa essa disposição de “escutar” e em seguida verificar o que se escutou. Foi o que fiz quanto à pesquisa do Datafolha, por exemplo. É claro que esses fact checkers podem errar ou usar da ferramenta como mais uma arma para “calar” o “outro lado” ou manipular a opinião pública, mas também a desconfiança ou a “certeza” prematura de que serviriam somente para isso é mais um sintoma da surdez do que outra coisa. Também é preciso “escutar” as checagens e verificá-las. Na realidade, só você pode checar a veracidade daquilo que toma conhecimento.

Mas a decisão de algumas redes sociais, como o Facebook, de se valer desses fact checkers para censurar publicações e banir perfis sem qualquer direito de defesa, tampouco fundamentando suas decisões, aí é apenas mais um ato de guerra que, por óbvio, levará à escalada de outros tantos atos de guerra em sentido contrário. Só em uma época de hipersensibilidade como a atual para uma empresa se arrogar o papel e a função do Poder Judiciário de um país. A atitude é burra, além de autoritária, e só pode lhe prejudicar no “longo prazo”. Se alguém está cometendo algum crime ou um ilícito civil na rede social, é óbvio que a reação contra isso está em procurar uma delegacia, o Ministério Público e/ou o Poder Judiciário para que tomem as providências legais cabíveis ao caso. Mas o Facebook optou por ser o ofendido, a polícia e o juiz. Não tem como dar certo, é evidente. E se der é porque a guerra piorou.

O Facebook deveria aprender com o famoso programa de rádio Pânico. Ao contrário inclusive da quase totalidade de jornais, revistas e programas de televisão pelo país, o Pânico optou por escutar. E escutar todo mundo. Nesse período eleitoral, então, vem fazendo um serviço de utilidade pública impecável. Desde o dia 18 de julho, pelo menos, o programa vem realizando debates com surdos da esquerda e da direita, permitindo ao ouvinte, talvez pela primeira vez, ter contato com um discurso contrário ao seu que ele vem se recusando a escutar faz anos. Mais ainda, sabe usar o twitter para que qualquer um possa participar. No programa do dia 16 de agosto, por exemplo, que recebeu um advogado do MBL e um sindicalista rural, a hashtag usada pelo programa foi #porquesoudedireita e #porquesoudeesquerda, para que os ouvintes interagissem respondendo.

Embora o programa seja humorístico, na prática se tornou o melhor programa político do país, com real diversidade de opiniões e às vezes até com debates inteligentes, como o de ontem entre Alexandre Borges, ex-colunista desta Gazeta do Povo, e Soninha Francine, ex-vj da MTV e vereadora em São Paulo. Muito do sucesso se deve à condução magistral de Emílio Surita, que sabe como poucos deixar os debatedores falarem, dialoga com ambos, permite os griteiros, as “lacrações” e “mitagens”, sabe rir de si e de todos ali. Ninguém é cerceado e tem total liberdade para expor suas opiniões. É algo que se tornou tão raro que até parece original. Que seja modelar também e outros sigam seu exemplo. Quem ganha somos todos nós. Faça uma experiência, caro leitor, se duvida. Escute o programa de ontem e note se no decorrer do debate sua  hipersensibilidade não diminui, a ponto de já não ser tão absurdo imaginar-se voltando à uma mesa de bar para discutir, e dar risada, com aquele seu ex-amigo expurgado da sua vida porque ambos se tomaram surdos um ao outro e, em consequência, inimigos mortais.

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