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Foto: Sergei Ilnitsky/AFP
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O grande filósofo Wittgenstein dizia que o mundo é a totalidade dos fatos e não a mera somatória das coisas contidas em uma ideia. Não estranhe o vocabulário. Estou com Wittgenstein nesse particular. Não adianta você fazer um inventário de todos os objetos e chamar de “meu mundo” (em oposição ao “mundo” do seu adversário) a fim de protegê-lo com zelo e esperança. O que dá consistência ao mundo é a sua estrutura, o modo como as coisas estão relacionadas e o fato de que essas relações não dependem da ideia que você faz do mundo. Filosoficamente, acho isso poderoso. Por uma razão simples: a gente não deveria olhar para as coisas com a expectativa de encontrar uma unidade toda certinha, estática e disponível para o nosso entendimento e prazer. O mundo não é uma ideia fixa, mas a relação estruturada de fatos dinâmicos, que para todos os efeitos não oferecem garantias de sua estabilidade. Ou seja, a incerteza permeia o mundo.

Olhando para o ponto de vista do nosso entendimento — nossa tentativa sempre frustrante de ter uma ideia segura de mundo, uma verdade para chamar de “nossa” —, há duas possibilidades: acreditar e duvidar. Crenças consistem em estado mental oposto ao estado mental da dúvida. Com a crença conseguimos nos mover com relativa segurança dentro de uma ideia de mundo. A dúvida é a suspensão desse movimento, um caso de irritação mental em que fazemos de tudo para voltar ao estado normal de crença. O estado da dúvida, todavia, estimula a mente a iniciar investigação sobre o que de fato se passa no mundo. Exemplo: todo dia chego em casa supondo que um assaltante pode me abordar. Embora seja um bairro estatisticamente tranquilo, ao duvidar, inicio um processo de investigação para me certificar se está tudo bem. Não quero surpresas, quero estabilidade. Mas é preciso reconhecer os riscos, o que significa estar sempre pronto para eventuais desastres, isto é, para as incertezas. Em termos de honestidade intelectual, sempre pronto a rever nossas crenças.

Um estado mental de crença não é um mero conteúdo mental, exceto para uma pessoa muito dogmática que se prende à sua ideia fixa de mundo como verdade permanente e indestrutível. O dogmático, cá entre nós, é um bom exemplo de covarde. A disposição dogmática está ligada a personalidades que preferem aspectos gerais, abstratos e vagos para habitar em detrimento dos fatos particulares, brutos e concretos. É fácil ficar tranquilo no seu mundo, deitado eternamente em berço esplêndido. Nos casos severos de covardias, não se deve correr riscos de perder o ideal de unidade, perfeição, ordem e conforto. A impressão que uma pessoa dogmática passa é de ser incapaz de lidar com o fragmentário, as imperfeições e a possibilidade de desordem. Trata-se de viver patologicamente preso ao mundo como ideia fixa e toda certinha, segura e frágil — para usar a expressão do filósofo Nassim Taleb.

Agora vamos aplicar isso à terminologia preguiçosa do ideário político. Os termos “esquerda” e “direita” funcionam como referências ao posicionamento ideológico de determinadas pessoas e grupos que pensam e, sobretudo, agem politicamente. Até aí, sem problemas — e se alguém discorda, esse é um bom momento. Quando uma pessoa diz “sou de direita”, é porque ela resume em um termo fixo uma ideia fixa de mundo, e quer que essa ideia forneça uma unidade inabalável de sentido. Contudo, há um contexto histórico, social e psicológico. Afinal, é alguém falando de uma sociedade historicamente determinada. E não só falando, mas se movendo dentro dela.

Os termos “direita” e “esquerda” são descritivos de um estado mental de crença sobre o mundo político. Termos que descrevem certo conteúdo de valor acerca das relações entre os indivíduos, a sociedade e o Estado. Quando eles são descontextualizados de uma história, de uma sociedade e de uma mente, não possuem qualquer significado. Para um francês do século 18, ser de direita é algo bem diferente que ser de direita para um alemão entusiasmado com as promessas do Terceiro Reich. Para um parlamentar inglês do século 18, ser de esquerda não se trata exatamente da mesma coisa que ser de esquerda dentro de um diretório acadêmico de um curso de humanas numa universidade federal brasileira do século 21. Resumindo: não existe valor absoluto de verdade nos termos “direita” e “esquerda”. Não há conteúdo na linguagem política sem relação com o mundo político, com os fatos políticos que o estruturam.

Por causa dessa possível vagueza terminológica, ser de “direita” ou ser de “esquerda” depende de um horizonte de expectativas políticas construído a partir de ideais traçados e sustentados por um conjunto relativamente coerente de crenças sobre o estado atual da cultura, da economia, da história e da política. Perdoem-me, não quero ser pedante, mas recorrerei mais uma vez a Wittgenstein: somos falantes inseridos dentro de uma forma de vida. E nossa forma de vida é um dado no qual nos movemos por meio de práticas linguísticas.

Infelizmente ou felizmente (e aqui depende mesmo), intelectuais ideologicamente comprometidos assumem a tarefa moral de justificar e atualizar o horizonte das crenças a partir do qual as ideologias são construídas e compartilhadas. Intelectuais tendem a assumir para si a missão de relacionar velhas experiências e novas expectativas e falar em nome da “verdade dos fatos”, da “realidade”, sem perceber que falam em nome de suas abstrações. Como ideais não são abstrações vazias pairando em um distante mundo das ideias, pois os ideais estão realizados nas obras de seus idealizadores, é preciso, para entender essas ideologias, estudar seus defensores no horizonte histórico em que constroem e defendem suas crenças. A primeira grande surpresa é notar que não faz sentido falar em homogeneidade e univocidade do pensamento de direita ou de esquerda. Tais categorias perdem o valor de verdade absoluta diante da pluralidade irredutível e antagônica das opiniões. Enfim, o mundo volta ser o que é: tudo menos uma ideia fixa.

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