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Jack Nicholson no filme "O Iluminado", de Stanley Kubrick, baseado na obra de  Stephen King.
Jack Nicholson no filme "O Iluminado", de Stanley Kubrick, baseado na obra de Stephen King.| Foto:

Trabalhar em biblioteca pública foi uma das experiências mais aterroriz… fascinantes que tive na vida. Durou, infelizmente, pouco tempo: dois anos. Em primeiro lugar, é preciso dizer logo para que não restem expectativas infundadas nem romantismos extemporâneos: bibliotecário não é o tipo de gente que lê incessantemente quando não está bocejando, ou que boceja incessantemente quando não está lendo.

Bibliotecários e técnicos em biblioteconomia carregam, abrem e fecham caixas, fazem processamento de dados, discutem com secretários de Educação e Cultura, imolam-se por verbas exíguas, elaboram minuciosas listas de compras que nunca serão compradas, mandam a impressora para o conserto, recebem a impressora quebrada novamente, lidam com doações de toneladas de livros escolares que ninguém mais quer: nem alunos, nem escolas, nem igrejas, nem mendigos. De vez em quando, na hora do almoço, quando não há ninguém por perto a importunar a hora do almoço, é possível ler.

Bibliotecas são lugares em que se lê, mas quase sempre são lugares onde entra gente doida. O tempo todo. Essa, estou convencido, é a vocação fundamental da biblioteca pública: servir de hospício temporário, sanatório de passagem, para gente clinicamente doida, metafisicamente doida, mansamente doida. Algumas, passam em concurso e aparecem até para trabalhar; outras, para ler; outras ainda, para conversar ou simplesmente estar ali. E as pessoas querem falar de si, da vida alheia, dos parentes, do Código da Vinci, da política, da falta de política. E, se calhar, dos Cinquenta Tons de Cinza.

Em bibliotecas públicas, chamamos os leitores de “usuários”. Faz muito sentido.

Certa feita, num sábado, quinze minutos antes de fechar, entram duas pessoas. Enquanto eu atendia a primeira, interessada em “psicologia” – et pour cause –, o segundo que entrara me observava.

A moça queria alguma coisa qualquer que a animasse, os livros que vocês sabem, que nunca funcionam, pois se funcionassem o gênero da autoajuda se extinguiria. Auscultei seu coração com o profissionalismo de um esculápio e indiquei o livro apropriado com o amadorismo de um leitor. Ela gostou e pediu também O poder do pensamento positivo… Foi-se embora feliz, a seu modo.

Cinco minutos para fechar, a felicidade invadindo meu coração.

O homem, que esperava com paciência suspeita, olha bem para mim, olha bem nos meus olhos e, com sorriso que pretendeu cúmplice, pergunta:

“Você se interessa por essas coisas?”

“Que coisas?”

“O sentido de tudo. Da vida.”

“Veja, são quase uma da tarde…”

“Eu descobri o sentido da vida.”

“É mesmo? Que bom… qual livro o senhor vai levar?…”

“Quer saber o sentido da vida?”

“Sábado, às 13h? Não, obrigado, deixa pra segunda-feira…”

“Não quer mesmo saber?”

“Não, não quero mesmo saber.”

“Não acredita em mim?”.

“Não.”

“Sério?”

“Seríssimo.”

“E por quê?”

“Se eu um dia acordasse, e tivesse a acachapante certeza de que encontrara a verdade, o sentido último, o fundamento primeiro, com certeza absoluta procuraria um médico.”

“(…)”

“O senhor vai levar algum livro? Se é que ainda precisa de livros… Já vamos fechar.”

“Ah, sim, quero ler O Segredo!”

 

Bibliotecas são lugares onde entra gente doida.

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