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Mulher chora na cidade de Minamisanriku, a localidade mais próxima do epicentro do terremoto, em 2011.
Mulher chora na cidade de Minamisanriku, a localidade mais próxima do epicentro do terremoto, em 2011.| Foto:

Em 2011, cidades inteiras foram destruídas e milhares de pessoas morreram, depois que um tsunami atingiu o Japão. As imagens eram impressionantes: lixo empilhado, corpos, sistema de energia comprometido, abastecimento interrompido. De amolecer o mais alemão dos corações.

Tão ou mais impressionantes que as imagens do Japão, entretanto, eram as imagens dos japoneses. Resilientes e civilizados, reagiram com a fortaleza de costume. Organizaram-se, ajudaram-se mutuamente, com serenidade. Choraram seus mortos, mas sem maiores dramas fizeram o que havia para ser feito – e, mais uma vez, reconstruíram o país.

Anos depois, far far away, num ensolarado rincão tropical, um candidato à prova do ENEM chega atrasado e toma com os portões na cara. Dá entrevista chorando. Outro candidato se orgulha por ter chegado três horas antes e se postado diante dos portões da escola em que faria a prova. Dá entrevista sorrindo.

Tudo para fazer uma prova.

Não se trata de executar um bandido ou evitar a execução de um inocente, nem de destruir ou salvar o mundo da destruição, como nos filmes americanos. Nada de enfrentar tsunami, bombas nucleares, grupos terroristas. Apenas participar de um teste de conhecimentos gerais.

Teste esse que acontece todos os anos, no período da tarde, respeitado o fuso horário de Brasília e as intempéries climáticas. Alto grau de previsibilidade, nenhuma grande surpresa. É tudo tão previsível que, a depender do interesse, um dia há de ocorrer que aves migratórias compareçam no horário marcado, na instituição escolhida, para também avaliar seus conhecimentos.

Porém, estamos no Brasil e, para cumprir esse “dever” – que não é bem um dever, mas um direito dos alunos porventura interessados –, parece que o mundo tem de acabar antes – uma, duas, dez vezes –, num ciclo indiano de destruições e renascimentos, vida e morte. Isso me parece uma pequena amostra do, digamos, ethos nacional. Até o que não é improvisado é feito no improviso ou tem jeito de qualquer jeito.

Por que é tão difícil para o desgraçadamente nascido no Brasil chegar… na hora certa, com a naturalidade das coisas banais, como deve ser? Atrasar-se é absurdo; contudo, também há um quê de absurdo em montar uma operação de guerra para não se atrasar de jeito nenhum, e chegar diante dos portões duas, três, quatro horas antes, como se fosse coisa recomendável. São dois lados da mesma esquisitice. São dois lados de ser brasileiro.

Sei que o que escrevo parece contra-intuitivo: pior do que chegar muito antes é chegar um pouco depois. De acordo. Mas chegar muito antes não é mérito, nem é uma grande ideia. Numa prova longa, que dura quatro ou cinco horas, o aluno deve estar suficientemente descansado, alimentado e tranquilo para que seu desempenho seja satisfatório.

Um aluno que chega três horas antes e fica sob o sol, bebendo água morna, usando banheiro de boteco e comendo qualquer coisa, ou não comendo coisa nenhuma, fará a prova com muito piores condições, físicas e psicológicas, que aquele outro que se organizou bem o suficiente, como um aspirante a japonês, e chegou a tempo – nem tão tarde, nem tão cedo.

Reparem que a crítica a ser feita é a esse espírito muito nosso de fazer do cumprimento banal de deveres, ou mesmo da reivindicação banal de direitos, uma grande, uma grandessíssima coisa, digna de figurar em novelas e filmes de aventuras. Nada aqui acontece com a discrição dos países mais civilizados. Essa desorganização exasperante – do caráter, quando individual; das instituições, quando coletiva – não deixa de ter algum lado bom. Tendo seu lado bom, cabe ao cronista apontá-lo.

Certa feita, um amigo foi a trabalho à Alemanha e lá ficou três meses. Deslumbrou-se com a Alemanha, com os alemães e, especialmente, com as alemãs. Também com a cerveja, o calor, o frio, a limpeza das ruas, a pontualidade dos trens, a eficiência dos funcionários, a antiguidade dos prédios e, sobretudo, com o sistema de tráfego. Sim, o tráfego.

Disse-me ele, encantado: “Na Alemanha, haja ou não carros na rua, o alemão aguarda o sinal verde para atravessar”. Ele contou isso esperando de mim aplausos, pulinhos, exclamações. Ansioso, repetiu: “Ninguém atravessa a rua antes de o sinal abrir, venham carros ou não!”

Em vez de aplausos, pulinhos, exclamações, respondi:

– Não por acaso, inventaram o nazismo.

Faltou esbofetear-me. Indignou-se como um cruzado. Não compreendeu e pediu explicações. Exigiu explicações. Dei as explicações.

A mania de seguir ordens, mesmo quando absurdas, ou quando ordens boas sejam dadas numa situação absurda: essa mania é coisa de gente que coloca ordens – e ordem – acima de tudo, inclusive das pessoas envolvidas.

Carnificinas em escala industrial como as do nazismo e do comunismo só são possíveis quando o espírito do tempo, ou o ethos nacional, estimulam um grau de obediência e de amor a regras que transforme os homens e as mulheres em cidadãos exemplares; de cidadãos exemplares, soldados exemplares; de soldados, autômatos.

Gosto de saber que na Alemanha costumam respeitar regras e horários, mas não gosto de saber que regras e horários são respeitados a despeito de qualquer coisa ou pessoa. Se não há carros à vista, atravessar o sinal vermelho é, garanto, indício de saúde mental e cívica.

Voltando ao Brasil, depois de ter passado por japoneses e alemães, por tsunami e nazismo, reconheço, como prometi, que dos nossos vícios podemos extrair espúrias virtudes. Existe algo bom em descumprir regras, em desobedecer a autoridades, em colocar um tanto de caos na ordem. O fascismo não é possível aqui. Não temos competência, organização e senso do dever para tanto.

Porém, convenhamos: o ENEM é somente uma prova para avaliar conhecimentos dos alunos egressos do Ensino Médio. Não mais do que isso. Nunca chegar a tempo, ou chegar tanto tempo antes: ambos os hábitos denunciam o que somos e o que podemos ser. Um bocadinho de nipo-germanismo não cairia mal em nossa tão brasileira insanidade.

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