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Arquivo pessoal
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Miguel Forlin é crítico de cinema. Escreve no Estado da Arte, projeto multimídia do jornal O Estado de São Paulo, e consultor da Jovem Pan, onde fala semanalmente e mantém um blog atualizado. Também é curador da Mostra Cinema e Liberdade, iniciativa do IFL-SP (Instituto de Formação de Líderes de São Paulo) e do Estado da Arte, e foi membro do júri da crítica da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

 

1 A formação de um crítico de cinema parece sempre acidental: o sujeito viu centenas e centenas de filmes, começou a ler sobre eles, resolveu escrever sobre eles e encontrou lugar para publicar. É isso, é só isso? Presumo que não. Fale sobre sua formação e suas referências na crítica de cinema.

Nos dias de hoje, em que há um farto material disponível e diversos meios de acesso, acredito que a maioria dos críticos sérios percorre a trajetória que você descreveu. Certamente, foi o meu caso. Conheci e me apaixonei pelo cinema na infância, li e vi tudo o que pude na adolescência e passei a escrever sobre filmes na vida adulta. No período inicial de aprendizado, três autores se destacaram e continuaram sendo as minhas principais influências: André Bazin, tanto por seu espírito pioneiro quanto por sua visão de mundo, muito parecida com a minha; François Truffaut, em razão de sua paixão inabalável; e Éric Rohmer, de quem poderia falar o dia inteiro, mas do qual ressaltarei somente um aspecto: a erudição. Porém, respondendo à primeira parte da sua pergunta, há outras maneiras de iniciar a carreira de crítico. Existem os que se formam jornalistas e entram na área por uma escolha editorial; os que pesquisam sobre cinema nas universidades. Se retornarmos à época da formação da Cahiers du Cinema, por exemplo, veremos que aqueles desbravadores estavam em território inexplorado e desenvolvendo novas teorias, ou seja, eles criaram o material que não existia naquelas décadas e ajudaram a formar o que viria depois. Exemplos como esse mostram que vários caminhos podem levar à atividade crítica.

2 Um crítico de cinema tem de, em tese, “saber tudo” – aspectos técnicos, montagem, edição, direção, fotografia – ou pode bem existir o crítico mais literário, que se atêm à narrativa e ignora alguns aspectos, outro mais técnico e pegado à estrutura do filme etc. O estilo é o crítico?

Numa conversa que tive com o crítico e cineasta Paul Vecchiali, ele me disse que, ao ler textos atuais, nunca sabe se o autor está falando de um filme, livro ou pintura. Aqueles que fazem uma distinção entre conteúdo e forma e falam apenas da história não são críticos, mas opinantes casuais. Arte é técnica, é forma. O crítico funciona como um intermediário entre o artista e o público, é ele quem analisa os meios e busca descrever os mecanismos empregados. Qualquer um de nós reage a uma história, e se o crítico se restringe a falar sobre a sua reação, ele é somente mais um espectador. Mas se passa a articular um diálogo com a obra, interpretando as escolhas formais, fazendo conexões históricas e paralelos com outros filmes, o exercício crítico entra em ação, e ele se torna um interlocutor ativo, capaz de mostrar caminhos e abrir portas. A adaptação da frase do conde de Buffon se aplica. Sim, o estilo é o crítico, mas isso não tem nada a ver com a distinção entre conteúdo e forma e sim com as características de análise e escrita dos autores. Há críticos obcecados com uma determina questão, há críticos que se abrem para um cenário mais amplo, há os que são fleumáticos e há os que não conseguem esconder a paixão ou impaciência. Uns são herméticos, outros, cristalinos. E por aí vai.

3 O cinema tem a peculiaridade, em comparação com as outras artes, de ser aquela arte de história perfeitamente delimitada: você sabe onde começa, vê o cenário inteiro e seus desenvolvimentos. Quais são os momentos importantes, os marcos estéticos e artísticos, do cinema?

O cinema é um caso muito curioso. Nas artes milenares, séculos se passaram até que transformações estéticas e revoluções formais ocorressem. No cinema, tudo isso aconteceu em poucos anos. Da sua origem até o surgimento do cinema moderno, não há um intervalo longo. Mais fascinante ainda é a rápida consolidação de certas práticas. Por exemplo: entre os experimentos de D. W. Griffith e a perfeição narrativa de John Ford, pouco tempo se passou. Também chama atenção a rapidez com que as mudanças foram percebidas, analisadas e descritas por críticos e historiadores. A razão disso talvez esteja nos exemplos legados pela história. O cinema aprendeu com as outras artes e concentrou as suas convulsões internas em um único século e não em vários. Dito isso, eu completaria afirmando que é leviano apontar os momentos mais importantes, pois quase todos os movimentos introduzem novidades que seriam usadas e aperfeiçoadas posteriormente. Aos que desejam conhecer o assunto, recomendo que estudem tudo. Tenham paciência, aproveitem os filmes e os textos. Absorvam antes de começar a analisar e indicar preferências. Deixem que o cinema lhes mostre a vida. Antes de tudo, se emocionem. Deixem a paixão nascer. Quando tiverem uma grande massa disforme à frente, aí é hora de dar uma forma.

4 Eu gosto de listas, não sei se você gosta. Cite os diretores e os filmes, quantos quiser, que você considera fundamentais. Aproveite e cite os livros sobre cinema que recomenda para o neófito.

Também gosto de listas, embora elas mudem rapidamente. Em vez de fazer uma lista de diretores e filmes fundamentais (precisaria de mais tempo para concebê-la), vou falar dos meus diretores e filmes preferidos. A primeira é formada pelos seguintes nomes: D. W. Griffith, Sergei Eisenstein, Howard Hawks, John Ford, Jean Renoir, Luis Buñuel, Carl Theodor Dreyer, F. W. Murnau, Fritz Lang, Roberto Rossellini e Kenji Mizoguchi. A segunda, pelos seguintes títulos: A Palavra, Aurora, Viagem à Itália, A Grande Testemunha, A Mocidade de Lincoln, Minha Noite com Ela, Esse Obscuro Objeto do Desejo, Aguirre: A Cólera dos Deuses, Corrida Sem Fim e O Exército das Sombras. Por trás das duas listas há somente a minha subjetividade e preferências. Se alguém desejar conhecer o cinema a partir desses nomes e filmes, não tem problema. Acho muito importante sempre associar o exercício intelectual de estudar o cinema com as paixões e os sentimentos. É mais prazeroso e significativo. Tomá-lo friamente como um objeto nunca me interessou. Sobre os livros, indico esta lista: A Forma do Filme e O Sentido do Filme, do Sergei Eisenstein; Notas sobre o cinematógrafo, do Robert Bresson; Esculpir o Tempo, do Andrei Tarkovski; Os Filmes da Minha Vida e O Prazer dos Olhos, do François Truffaut; O Que é o Cinema? e O Cinema da Crueldade, do André Bazin; The Technique of Film Editing, do Gavin Miller e da Karel Reisz; A Experiência do Cinema, do Ismail Xavier; Escritos sobre Cinema, do Jean Renoir; The American Cinema – Directors and Directions: 1929 – 1968, do Andrew Sarris; Kino: A History of the Russian and Soviet Film, do Jay Leyda; Hollywood From Vietnam to Reagan e Personal Views: Explorations in Film, do Robin Wood; Le dictionnaire de la Nouvelle Vague, do Noel Simsolo; Histoire d’une Revue, do Antoine de Baecque; Currents in Japanese Cinema, do Tadao Sato; A Linguagem Secreta do Cinema, do Jean-Claude Carriére; Sobre a História do Estilo Cinematográfico, do David Bordwell; A Arte do Cinema: Uma Introdução e Film History: An Introduction, do David Bordwell e da Kristin Thompson.

5 O que há com o cinema brasileiro? Tem futuro, tem presente? Sabemos que não é preciso orçamento vultoso para fazer bom cinema: os cinemas iraniano, argentino, coreano e japonês, por ex, são feitos com poucos recursos, em comparação com o dos EUA, e têm uma gramática e uma estilística perfeitamente reconhecíveis. E são bons, em geral. No Brasil, minha impressão, os bons filmes ainda são pontos fora da curva, e a curva é sempre uma barafunda de obras pouco relevantes. Estou completamente errado? Se estou certo, ao menos em parte, a que se deve isso?

Sempre tem futuro. E o problema nunca é orçamento. Obras-primas já foram feitas com pouquíssimo dinheiro. A situação é muito complexa para ser analisada rapidamente, mas se eu tivesse de apontar uma causa importante para o estado atual de coisas, diria que é a ocupação de espaço por pessoas completamente desconectadas da realidade e muito mais interessadas em repetir discursos celebrados pela fraca elite intelectual do país do que em fazer cinema e tentar entender não só o próprio ofício como também mundo que as cerca. No Brasil, o cinema se tornou uma atividade praticada por panfletários e destinada exclusivamente para críticos convertidos, que se assanham em elogiar indiscriminadamente os filmes brasileiros. Nesse jogo de cartas marcadas, o público e o cinema saem perdendo. Às vezes, surge um ou outro filme bom, mas como a maior parte da crítica está corrompida ideologicamente, esses bons filmes ficam perdidos no meio da confusão. Como separaremos o jogo do trigo se quase todas as publicações elogiam efusivamente As Boas Maneiras, Aquarius e tantos outros longas medíocres ou ruins? Para sair desse buraco, talvez não precisemos de muito. Se surgir um cineasta ciente do seu ofício, de suas responsabilidades e honesto em suas intenções, talvez o cinema brasileiro se revitalize. Se também existir um crítico disposto a destaca-lo da multidão, é possível que as coisas se ajeitem. Assim espero.

6 A crítica de cinema, que já foi tão relevante como expressão de reflexões e debates culturais mais amplos, parece ter perdido importância. Nunca houve tantos críticos em blogs, revistas e canais, e nunca a crítica pareceu tão rasa e anedótica. Concorda, discorda, e como percebe tudo isso?

A crítica cinematográfica perdeu uma boa parte de sua importância, mas não toda. No Brasil, por exemplo, a Revista Foco pauta os debates entre os melhores críticos do país. O Estado da Arte obtém um efeito parecido. No mundo, ainda há bons críticos escrevendo bons textos e enriquecendo o cenário cultural. Mas é inegável que, com a internet, qualquer um pode falar sobre cinema. Entre dez críticos, oito são péssimos, não sabem escrever e desconhecem o assunto sobre o qual estão comentando. No meio disso, ainda há as causas ideológicas e o seu reinado de destruição sobre a inteligência humana. No entanto, a mesma liberdade que abriu espaço para os imbecis pode dar voz a um sujeito talentoso, que, numa situação diferente, talvez permanecesse desconhecido. Por fim, quero terminar dizendo que a crítica de cinema continua respirando, só é preciso paciência para encontrá-la.

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