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No Brasil, a história acontece muito rapidamente. Acontece e é esquecida. A tragédia de Mariana poderia ter servido de exemplo para mudanças drásticas na política de fiscalização e controle e na ciência do monitoramento de rejeitos em barragens. Não serviu para nada. Os mortos não serviram nem como mártires.

Sabemos que é preciso deixar a meta aberta, atingir a meta e dobrar a meta: novamente uma barragem se rompe, pessoas morrem, cidades desaparecem, rios apodrecem. Somos especialistas em provocar incidentes de grandes proporções e depois jogar a culpa no acaso, nas chuvas, na falta de chuvas, no ressecamento, na umidade.

A culpa não é de Jair Bolsonaro, como querem fazer crer alguns delinquentes morais de última hora. Aliás, ele foi rápido na resposta, ao contrário de Dilma Rousseff, quando em Mariana. O presidente sobrevoou a região e não pode ser acusado de se omitir. No mais, ele não teve tempo de cometer os erros que ainda cometerá na política ambiental, caso realmente venha a tratar meio ambiente como estorvo ao agronegócio. Se houver culpa de presidente, o endereço eleitoral é outro.

A responsabilidade pela catástrofe em Brumadinho talvez seja comprovada e distribuída, mas é também difusa. Certamente existem políticos, fiscais, empresários, técnicos – nobres e sobrenomes – que deveriam responder pelas mortes e danos incalculáveis, mas o que falta em tudo isso é uma tomada de consciência cívica mais radical.

Nas relações entre o público e o privado, a promiscuidade potencializa o erro de todos os envolvidos. No capitalismo de compadrio, a lei é confusa, a burocracia estrangula, o fiscal ignora, o perito é incompetente, a tecnologia é obsoleta, o empresário é imediatista, o político é corrupto. A política pública é política demais e pública de menos.

Não há incentivos jurídico-econômicos para fazer o certo, e os mecanismos institucionais precisam ser repensados com urgência, a despeito de ideologias e protagonismos. Hoje, quem faz errado sabe que nada acontecerá se der errado; quem faz o certo não espera recompensa ou reconhecimento. A justiça é soterrada pela ineficiência e as reparações são levadas pela enchente. O crime definitivamente compensa.

A lama de Mariana se amontoa à de Brumadinho, e ambas se confundem com as chamas no Museu Nacional, e do Museu Nacional para trás, numa sucessão de eventos semelhantes e sazonais, tudo para compor o roteiro batido dum país que esnoba a isso mesmo, ri de si mesmo, trata a si mesmo como rejeito.

Franz Kafka escreveu o seguinte aforismo: “Leopardos irrompem no templo e bebem até o fim os jarros de sacrifício; isso se repete sempre, sem interrupção; finalmente, pode-se contar de antemão com esse ato e ele se transforma em parte da cerimônia”.

É mais ou menos o que se passa por aqui. Certa feita, os escândalos começaram a acontecer; repetiram-se sempre, ininterruptamente; as pessoas se acostumaram, acomodaram-se à situação, inventaram desculpas; por fim, pode-se contar de antemão com esses escândalos. Eles se incorporaram à nossa história e se transformaram em parte da cerimônia.

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