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O sommelier de indignações
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Um cachorro foi morto a pauladas numa das lojas Carrefour. Os detalhes são conhecidos, compartilhados, publicados e debatidos. Gosto muito de cachorros e não fui capaz de tomar conhecimento dos detalhes; ficam por conta do leitor.

A reação de costume: histeria, revolta, indignação e, principalmente, troca de acusações. Não sou dado a esse tipo de arroubo, mas é perfeitamente compreensível. Também achei a atitude repugnante. Havia muitas formas melhores – a rigor, todas as outras formas – de lidar com o cãozinho no estacionamento.

Nossa legislação é demasiado laxa e condescendente com maus tratos, torturas e morte de animais. As sanções são ridículas e estimulam esse tipo particular e muito disseminado de sociopatia. Estou com o filósofo alemão Arthur Schopenhauer: quem é cruel com bicho, boa gente não é.

Maior rigor contra esse tipo de crime poderia estimular um cuidado também maior no tratamento dos animais na indústria alimentícia e nos trabalhos domésticos. Sou carnívoro, sei que há tensões éticas a respeito disso, defendo a moralidade de se comer carne, mas nem por isso gosto de saber que muita empresa trata animal como coisa – ou coisa pior. É possível avançar muito nessa direção, sem recorrer ao veganismo, e o trabalho de Temple Grandin deveria servir de exemplo.

Há outra discussão relevante, que sempre aparece em casos assim. Formam-se grupos, nichos, gangues éticas, uns a dizer aos outros que se você se revolta com tal crime, deveria antes se revoltar com outro crime; se você sente compaixão pelo cachorro, não sente pelo nascituro; se chora a morte do cavalo, não chora a morte do soldado.

É o fenômeno do sommelier de indignações. Um cachorro foi morto a pauladas? Pois uma senhora de 106 anos também foi morta a pauladas, no Maranhão. Ou você lamenta o cachorro, ou lamenta a velhinha. Mas os mesmos que lamentam a morte da velhinha, lamentam com ainda mais energia que um advogado tenha recebido voz de prisão de Ricardo Lewandowski.

A indignação em rede social é como as matrioskas, as bonecas russas: uma dentro da outra dentro da outra dentro da outra. O resultado é que todos se preocupam mais com a autenticidade da indignação alheia e menos com aqueles me merecem nossa compaixão.

Essa insensatez é tão frequentemente acreditada que, aos poucos, vai ganhando ares de sensatez. É verdade, por exemplo, que há grupos que patrocinam o aborto e se comovem facilmente com as mortes de animais. É também verdade, entretanto, que há quem se comova com os nascituros, que combata o aborto, e pouco se importe com o sofrimento da mulher estuprada, abandonada, que terá aquele filho e precisará muito mais de apoio que de repúdio.

Por isso mesmo, as comunidades religiosas sadias promovem não apenas o combate ao aborto, mas também o acolhimento da mãe solteira, desamparada, que padece suas dores e suas dúvidas. Combate-se o aborto pela via negativa – a negação de sua legitimidade – e também pela via positiva – a compreensão dos sofrimentos de quem o pretende praticar. É assim que tem de ser.

É assim que tem de ser também noutros embates éticos. Essa tendência ao tribalismo, que se cristaliza na barafunda das mídias sociais, é o contrário da ética, da moral, das intenções mesmo que boas somente na aparência. A ética é, precisamente, a capacidade de reconhecer a dignidade do outro, a despeito das diferenças. Seja esse outro o Outro político, religioso, étnico ou… animal.

Não faz nenhum sentido tal ímpeto exclusivista, de quem parece acreditar que ser bom é ser bom para os seus, para as suas próprias causas, num moralismo coagulado que cheira mal tão logo se lhe abra a tampa da retórica. Amar somente os seus, aliás, é fácil demais. Fácil a ponto de não valer quase nada, no fim das contas. A mensagem evangélica é simples, direta e inequívoca: ame seus inimigos. Ame os diferentes. Ame os que precisam de amor. Ame os que pecaram. Ame os que são perseguidos pela multidão. Ame os que não amam.

Essa atitude nem de longe significa um desprezo pela hierarquia da natureza, uma idolatria dos animais em lugar dos humanos, um retorno ao panteísmo de timbre pagão. Muito distante disso, a misericórdia se estende a todos aqueles que são frágeis e diferentes de nós. Combater o aborto não implica combater a mulher. Lamentar a morte cruel do cãozinho não implica festejar a morte cruel da senhora de 106 anos.

O amor, no sentido cristão da caridade e da misericórdia, no sentido franciscano do cuidado e da amizade, ou mesmo no matiz humanista, é abrangente e acolhedor; multiplica, quando dividido; extravasa, quando praticado; rende mais, quando usado. Há caridade para todos – animais e animais humanos. Falando nos humanos, é verdade que são eles, na hierarquia divina, os preferidos do Criador; mas também é verdade que são eles que pecam, que cedem à tentação, que crucificam o Filho do Homem, que matam cachorrinhos, bebezinhos e senhoras de 106 anos. Maldito o homem que confia no homem.

 

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