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Sartre e Foucault em 68
Sartre e Foucault em 68| Foto:

Toda a gente sabe ou deveria saber que as primeiras palavrinhas que um francês aprende a falar, quando bem pequenininho, quando bem entojadinho como só um bebê francês sabe ser, não são mamã, papá, mas “l’État, c’est moi”. Atribuída ao Rei Sol, Luís XIV, a frase costuma ser muito bem aceita por todos os nascidos naquele país tão racionalista e tão dado a irracionalismos.

Nada contra os franceses, tudo contra o gauchisme. As mais recentes manifestações populares são um dos tantos episódios de que a França é farta: gente brigando contra o Estado e querendo mais Estado para curar os males provocados pelo Estado, sempre revoltadinhos a favor. E, como já escrevi algures, tudo o que começa com liberté, égalité, fraternité quase sempre termina em guilhotina.

Para começo (meio) de conversa, não são populares, de fato, as revoltas. São populares num sentido muito lato e muito amplo, em que operários, intelectuais, jornalistas, imigrantes, desocupados e o Jean-Luc Godard jogam no mesmo time e querem burlar as mesmas regras. Ou seja, todo mundo reivindica do Estado as benesses a que acredita ter direito, tendo ou não direito, isso pouco importa. Deveres, poupança, trabalho, produtividade? Coisas para alemães e americanos.

O preço da gasolina é só o pretexto para todas as outras pautas, que vão do catastrofismo ecológico ao comportamento do Neymar. Num país do tamanho da Bahia, com sessenta e poucos milhões de habitantes, mais de setecentos bilhões de euros são gastos em seguridade social. René Descartes revira no túmulo, porque a conta não fecha.

É preciso dizer que não se trata de medidas emergenciais ou subsidiárias. Não crítico que o Estado (já que existe) socorra quem mereça ser socorrido, nas situações de fome, precariedade de saúde e urgências realmente urgentes. Discussões sobre o grau de interferência do Estado à parte, desde que exista essa interferência, que ela se reduza ao mínimo possível, e que não promova a mendicância oficial.

Que é o caso da França: um país de mendigos sociais reconhecidos em cartório. Nem todos (aliás bem poucos) precisariam da salvaguarda estatal para sobreviver. O que há é uma política tão sedutora e, a longo prazo, tão impossível quanto Catherine Deneuve: distribuição de renda, serviços e benefícios que são cada vez menos produzidos por ninguém e cada vez mais consumidos por todos.

O país, assim, se inviabiliza. A curto prazo, medidas de austeridade, corte de gastos e abertura de mercado, com o consequente e impopular desmonte do protecionismo trabalhista, são o remédio amargo, porém imprescindível, para colocar ordem no caos e dinheiro na praça; a longo prazo, será preciso repensar a política migratória, o baixo crescimento democrático e a freudiana rejeição ao espírito do Ocidente.

Portanto, identificam-se dois nervos expostos: o econômico, que tem de ser atacado o quanto antes, e o cultural, que tem de ser reconhecido e discutido com intensidade e sem concessões politicamente corretas.  Viver de esmola estatal tem sido, mais do que nunca, um estilo de vida francês: como os cafés, o cigarro, o sexo livre, os pelos nas axilas e a falta de banho.

A propósito do enrosco migratório, a reposta é até certo ponto simples: aceitação com integração. A rima é ruim, mas a solução é boa: quem chega tem de aceitar as regras mais gerais do país de chegada. Se você foge ou é expulso de seu país, significa que as coisas não vão bem por lá. Assim, é possível conservar sua identidade cultural, em família e comunidades, sem querer impor essa identidade à identidade maior, mais geral, da sociedade aberta. A Europa foi possível desse modo; os EUA e o Brasil também.

Enquanto isso, a França (com mais pressa) e a Europa (com alguns focos de resistência) islamizam-se, e o mundo assiste a tudo sem saber direito como reagir. Mais do que historiadores e jornalistas, a literatura dá o tom do que virá nos próximos anos, se nada mudar quando ainda houver tempo para mudar: Submissão, de Michel Houellebecq, é o romance panfletário e crível sobre esse futuro; mas, para quem tiver olhos para ver e ouvidos para ouvir, Partículas Elementares, do mesmo autor, por motivos menos óbvios e de mais difícil aceitação, é o romance crível deste presente incrível.

 

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