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Uma das grandes virtudes do livro “Rupturas”, de Manuel Castells, é trazer uma análise muito clara daquela que é a maior mudança do cenário de análise com o qual me acostumei nos jantares com Ruth Cardoso nos anos 70.

Apesar de tratar comunismo e capitalismo como parte de um mesmo processo de globalização de uma economia mercantil a partir do século 18, Barrington Moore Jr. empregava o Estado nacional como unidade irredutível e solitária da organização política e social. Não podia ser de outra forma. A primeira edição de “As origens Sociais da Ditadura e da Democracia” é de 1967. Neste tempo o estado nacional se tornara uma fórmula universal, especialmente a partir da completa descolonização que veio na esteira da segunda guerra: África e Ásia viam surgir novas nações a cada ano.

O livro de Castells opera basicamente com as mudanças que a segunda onda de globalização capitalista trouxe para os estados nacionais:

“A globalização da economia e da comunicação solapou e desestruturou as economias nacionais e limitou a capacidade do Estado-nação de responder no seu âmbito a problemas que são globais na origem, tais como crises financeiras, a violação dos direitos humanos, a mudança climática, a economia criminosa ou o terrorismo” (p.18).

Neste cenário de perda, pelos estados nacionais, da capacidade para resolver problemas ele mostra, com grande descortino, a grande mudança mundial nas estruturas de organização estatal do planeta:

“Para aumentar a capacidade competitiva de seus países criou-se uma nova forma de Estado – o Estado-Rede – a partir da articulação institucional dos Estados-Nação, que não desapareceram mas se transformaram em nós de uma rede supra-nacional para a qual transferem soberania em troca de uma participação na gestão da globalização. Este é o caso claramente da União Europeia, a construção mais audaz do último meio século como resposta política da globalização” (p. 19).

Ele mesmo faz uma avaliação muito positiva dos resultados:

“No início do século 21 o projeto da União Europeia havia se consolidado para além das projeções mais otimistas de seus visionários fundadores. Considerada em seu conjunto, a EU é a maior economia do planeta, com um quarto do PIB mundial; constitui um nó essencial dos circuitos financeiros globais, com Londres e Frankfurt sobrepondo-se a Nova York/Chicago, Tóquio e Hong Kong. Seus estados de bem estar social proporcionavam às respectivas populações um nível de vida mais alto que qualquer região do mundo, incluindo os Estados Unidos. (…) A democracia política e o respeito aos direitos humanos estavam plenamente consolidados. A paz parecia assegurada em seu conjunto, apesar da Guerra dos Balcãs. Embora a desigualdade social crescesse em certos momentos, sistemas corretores de distribuição de renda mantinham um nível de equidade relativa. Por fim, a consciência ecológica e as políticas ambientais se situavam entre as mais avançadas do mundo e constituíam a linha de defesa confiável do planeta azul” (pp. 83-4).

Todos estes muitos resultados surgiram num período muito curto do ponto de vista histórico. Organizações supra-nacionais tinham tão pouca influência na organização do mundo que podiam ser tranquilamente dispensadas nas análises globais até mesmo por um estudioso como Barrington Moore Jr nos anos 1960. Quando escreveu, o que realmente valia era uma experiência histórica milenar.

Desde a dissolução da Pax Romana, no século V, a história da Europa fora aquela de uma sucessão infinita de guerras, entremeadas por curtos períodos de paz. Neste sentido, a experiência da União Europeia é aquela de uma ruptura com um passado muito amplo. No lugar de buscar crescimento com exércitos, os Estado-nação do continente foram faze-lo com a cessão de partes de sua milenar soberania – entregue a comissões burocráticas que criam normas imperativas para os membros. Ou, na via inversa, as nações da comunidade submetem-se aos ditames das diversas comissões que construíram a nova realidade.

Nem sempre é fácil. Para submeter-se às normas do euro a Alemanha teve de abandonar o marco; a França, a uma moeda que tinha identidade total com a nação até no nome, o franco – ambas tinham mais de um milênio de vida. Assim a renúncia a vantagens particulares (no caso, a soberania para emitir a própria moeda) gerava escala para um projeto comum (uma moeda de reserva global).

Processo ainda mais forte de cessão de soberania nacional em prol de melhoria da gestão global está por trás de uma tentativa ainda mais importante: o Acordo de Paris. Neste caso, a renúncia da soberania para emitir carbono tem necessariamente de ser global – e esta é a primeira tentativa planetária de empregar o método da transferência negociada de soberania nacional para cumprir um objetivo da humanidade.

Este o lado positivo da mudança. Mas Castells é também bastante preciso para localizar os problemas que elas trouxeram:

“O paradoxal é que foram dois Estados-nação que estimularam o processo de globalização, desmantelando regulações e fronteiras na década de 80: as administrações de Reagan e Thatcher, os dois países então líderes da economia internacional. E são esses mesmos estados que estão recolhendo as velas neste momento, sob o impacto político dos setores populares que em todos os países sofreram as consequências políticas da globalização. Ao passo que as camadas profissionais de maior instrução e maiores possibilidades se conectam através do planeta em nova formação de classes sociais, que separa as elites cosmopolitas, criadoras de valor no mercado mundial, dos trabalhadores locais desvalorizados pela deslocalização industrial, alijados da mudança tecnológica e desprotegidos da legislação trabalhista” (p.18).

Não faz parte do argumento de Castells, mas vale notar. Até mesmo os Estados Unidos estão enfrentando um problema de escala em seu governo de teor puramente nacional, como era a regra antes da União Europeia do Acordo de Paris. Mas aqui, em vez de avançar na direção de uma cessão negociada de soberania, Trump está fazendo de tudo para agir como se o Estado-nação que dirige possa voltar aos velhos tempos da soberania ilimitada. Não à toa vive às turras com a União Europeia e tenta sair do Acordo de Paris. Já a Grã-Bretanha, com o Brexit, está diretamente envolvida na tentativa de recriar um Estado-nação sem a escala dada pela União Europeia.

Neste cenário mundial uma pergunta ganha nova dimensão: e o Brasil?

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