Faço minha estreia como autor no mundo virtual falando de um livro fenomenal: “Ruptura”, de Manuel Castells. Em apenas 150 páginas, sem notas de rodapé nem qualquer dos cacoetes de estilo acadêmicos estão resumidos os grandes dramas do momento planetário. Qualquer leitor vai aprender e se maravilhar.
As pressões cruzadas da ampliação da produção global, da comunicação humana cada vez mais centrada na internet (área na qual ele foi um grande pioneiro de estudos), da atividade financeira como o elo que possibilita a transferência internacional de frações de mais-valia e a extraordinária concentração de riqueza financeira que desequilibra a vida social por todo lado – tudo isso é mostrado para sustentar o argumento central da crise da democracia liberal na era Trump.
Li com o prazer de sempre quando se trata de Castells. Mas, confesso, também com um viés pessoal muito marcante: o tempo todo tive a impressão de que talvez Ruth Cardoso estivesse fazendo falta para o autor.
Explico: embora poucas pessoas saibam, os dois foram parceiros intelectuais ao longo de quatro décadas. Conheceram-se na Paris de 1968, quando Castells tinha 26 anos e era um jovem estudante de sociologia – e Ruth, doze anos mais velha, uma antropóloga já de nome formado.
Entusiasmado com o contato, Castells embarcou para São Paulo em novembro do mesmo ano e ficou um mês morando na casa de Ruth e Fernando Henrique. Veio para aprender, bem ao modo da anfitriã. Grande cozinheira, preparava jantares. Ainda na cozinha, enquanto conversava com os filhos na entrada da adolescência e ia executando suas receitas preferidas – hoje seria slow food de grande qualidade – ia debatendo teoria.
Durante o dia, enquanto as crianças estavam na escola, saía com Castells para as andanças pela colônia japonesa de São Paulo, tema de sua dissertação de mestrado, ou pela periferia que começava a ganhar novo significado com a migração maciça provocada pelo regime militar.
Na época era muito incomum que uma antropóloga estudasse sua própria sociedade. Todo o treinamento era voltado para a observação de outras culturas – e a existência de muitos grupos indígenas no Brasil permitia que quase todos os poucos antropólogos formados naquela época encontrassem um grupo não estudado para desenvolver seu trabalho.
Castells, que tinha a formação de sociólogo e era marxista, escreveria mais tarde sobre o tremendo impacto que os passeios guiados pelo campo de pesquisa antropológico da colônia japonesa paulista tiveram em sua obra: “Ruth me ensinou a pensar, quatro décadas atrás, no duplo processo de integração ao país e conservação da identidade, um tema que hoje é central no mundo”.
Este seria não apenas o tema central da obra dos dois, mas o assunto permanente de jantares, seminários, leitura de originais trocados pelo correio e depois por e-mails, debate de projetos de pesquisa, formação de pessoas, militância política, implantação de projetos. Foi assim ao longo de 40 anos, até dez anos atrás, em junho de 2008, quando morreu Ruth Cardoso.
Perguntará com razão o leitor: e meu viés? Bem. Desde o final da adolescência, ainda aluno do colegial, entrei de gaiato neste circuito. Levado por meu colega de turma, Paulo Henrique Cardoso, tive a felicidade de participar de infinitas conversas, discussões, leituras e outros agradáveis momentos com ela.
Claro, mesmo com o convívio não me transformei em Manuel Castells – nem mesmo tendo partilhado uns poucos jantares e conversas com ele. Mas tanto tempo partilhando ideias com Ruth Cardoso, e depois editando sua obra intelectual num volume organizado por minha irmã, Teresa Caldeira, que não apenas conviveu com os dois mas acabou sendo a sucessora de Castells em sua cadeira na universidade de Berkeley, não posso ler seus trabalhos sem passar por estas fortes evocações pessoais.
Bem. Tudo isso explica minha impressão de que, apesar da imensa importância do livro de Manuel Castells, um pequeno incômodo pessoal pela ausência de Ruth Cardoso pode servir como ajuda para algumas análises. Mas esta é uma outra história, que fica para uma próxima vez.
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