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Foto: Douglas Magno/ AFP
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Bem, chegou a hora onde você, caro leitor, e eu, solitário escritor, nos igualaremos na qualidade de eleitores para o primeiro momento da cerimônia de sagração de um indivíduo.

Esse modo de falar da eleição permite que pensemos nela segundo sua forma histórica mais profunda, seu teor milenar e razoavelmente universal. O método do voto para escolha de um comandante consensual do grupo é tão antigo e tão geral como a humanidade. Não é o único. Tão antigo e tão geral como ele é também seu oposto, o método de depositar muito poder na mão de um comandante – escolha justificada por escolha divina ou, em tempos mais recentes, carismática. Assim se sagram chefes de guerra, reis ou ditadores.

Nenhum dos dois métodos foi eliminado ao longo do tempo. Cada um deles é fonte de uma espécie de exercício do poder. De uma forma ou de outra, ambas são usualmente combinadas. Do voto, em tese, surge um consenso que permite o governo pacífico. Do comando absoluto se busca o ordenamento hierárquico, o governo pela obediência e a força.

O rito da eleição que praticaremos acomoda as fontes opostas através de um tempo cíclico. O fundamento para um ciclo vem desde as origens da humanidade. Está nos mitos, nos símbolos sagrados, na percepção de alternâncias como dia e noite, fases da lua, estações do ano. Os momentos de mudança de um ciclo para outro são marcados pelos rituais. Para quem pensa que os ritos marcando transições entre ciclos não fariam sentido no mundo moderno, basta lembrar a semana de sete dias e seu momento de pausa no final de semana (para muitos, o dia sagrado).

A eleição não é apenas o ato de escolha. Ela é o marco ritual que fraciona o tempo de comando político, marca o fim de um ciclo e o início de outro – com a troca no comando. A estruturação assim obtida permite um equilíbrio entre as exigências opostas do consenso amoroso e da obediência fiel. Ao estabelecer um tempo limitado para o exercício do mando ela elimina as tentações do poder absoluto permanente, dá esperanças de retorno e voz aos que ficaram de fora, impõe prudência ao governante – e lhe dá a força para decidir em seu tempo de mando.

O primeiro momento do ciclo acontecerá domingo, pelo ritual do voto dois membros comuns da sociedade serão sagrados. Isolados de todos os outros, disputarão a posição da autoridade que tem poder de comando ao longo do ciclo. A expectativa é que, até a disputa final, os dois escolhidos digam, da maneira mais clara que puderem, que compromissos estão assumindo com os eleitores. Que criem um liame.

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Este liame de expectativa é dado pela palavra. Pela palavra o candidato informa a espécie de esforço que fará no governo – e pelo cumprimento desta palavra será julgado pela História. Falando nisso, é bom lembrar: este é, também, um momento ritual de larga tradição na vida brasileira.

Começo do passado mais antigo do território atual. Os grupos que aqui vivem praticam quase todos, há milênios, uma combinação de escolhas consensuais e hierárquicas nas quais há método – mas não um ciclo. Chefes para os tempos de paz são sagrados por consenso geral e têm poucos poderes de mando pela força, dedicando-se o tempo todo para manter o consenso que é a própria identidade da tribo. Chefes militares, por sua vez, recebem poderes apenas nos momentos de guerra; no geral são poderes absolutos, mas terminam com o fim dos combates.

A organização em ciclos regulares veio dos portugueses. Eles instalaram governos com territórios de comando e poder delimitados por regras. As vilas eram governadas por vereadores eleitos a cada três anos. Eles faziam as leis (como as atuais câmaras municipais); velavam por sua execução (hoje a cargo do Executivo); mandavam prender, julgavam e cuidavam do cumprimento das penas (funções hoje divididas entre Executivo e Judiciário).

A regularidade dos ciclos de cumprimento deste ritual no Brasil é absolutamente espantosa. A primeira eleição foi em São Vicente, em 1532. De lá para cá o ritual se repetiu em todas as vilas desde sua fundação. De três em três anos na colônia e no império, de quatro em quatro anos ao longo da república.

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As exceções são muito raras. Pequenos períodos, variados em cada estado, no início da república, enquanto se implantava a divisão entre os três poderes nos municípios. Prefeitos indicados pelo executivo estadual, especialmente no Rio Grande do Sul da Primeira República. A única exceção nacional é o período da ditadura do Estado Novo, entre 1938 e 1945. Como se pode ver, as exceções vieram todas de cima, do poder central ou estadual.

Dito isto se pode perceber o quanto a regra é estável. Em quarenta anos de leituras sobre Brasil, nunca achei um caso de ditadura local, de cancelamento do poder de escolha coletiva. Nem de extensões de mandato, de burlas à troca do comando.

A regularidade produz um legado impressionante. As primeiras vilas brasileiras, fundadas nos século 16, estão se aproximando das 150 legislaturas em 480-420 anos. Esta é a base profunda do rito que vamos praticar no domingo. A verdadeira fonte histórica da vida democrática brasileira. Vereadores são, até hoje, talvez a única autoridade que a maioria da população brasileira viu pessoalmente na vida.

Sei que você, caro leitor, estará pensando no que pensam todos aqueles a quem apresento este dado numérico da história brasileira: escravidão, uma sociedade desigual, só votava a elite, etc.

Bem. Era assim em qualquer lugar do mundo onde houvesse eleições na época. E pergunto: se de fato havia gente com poder e dinheiro, uma desigualdade gritante; por que então nenhum dos poderosos resolveu ser ditador? Por que todos se submeteram ao ritual, aceitaram seu tempo e a alternância no poder?

Como nem eu mesmo sei responder, aceito sugestões. Constato apenas que até agora nunca recebi uma sugestão que me parecesse à altura da dimensão secular e espacial do fenômeno – que não é natural.

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Claro. Esta base de governantes com poder derivado do rito eleitoral conviveu, ao longo do período colonial, com um poder monárquico apresentado como sendo de origem divina e que aplicava mando hierárquico.

Mas as eleições rituais foram ganhando espaço no bolo do poder ao longo do tempo. A partir da Independência o poder de fazer leis passou para representantes eleitos para o Parlamento. O mecanismo do rito funcionou nesta esfera desde 1823, com a eleição dos primeiros constituintes.

Houve exceções, sempre partidas do poder central. D. Pedro I dissolveu o parlamento em 1823. Getúlio Vargas governou sem parlamento entre 1930 e 1934, depois ente 1938 e 1945. Os militares fecharam o parlamento por pouco mais de um ano, entre dezembro de 1968 e 1970.

De novo, a regra é muito maior que a exceção. O parlamento brasileiro tem mais de 180 anos de funcionamento regular. Isso o coloca atrás apenas da Inglaterra e dos Estados Unidos nas grandes nações do Ocidente. A França, Alemanha ou Itália – apenas para citar alguns exemplos – não chegaram lá. Portugal muito menos, de modo que parece pouco sábio puxar uma explicação desta origem.

De novo: não tenho uma explicação acabada, mas noto que os ciclos rituais nesta área também têm o peso da regularidade histórica.

A Regência criou, na década de 1830, duas ampliações de poderes para os eleitos nos ciclos. Na esfera nacional regularizou a obediência do Executivo a um orçamento aprovado pelo legislativo, dando ao Parlamento algum poder de supervisão sobre o executivo monárquico. Uma reforma constitucional criou as Assembleias Provinciais, a primeira instância de poder para representantes eleitos na esfera intermediária de governo. Desde sempre as duas ampliações funcionaram.

Outros grandes avanços do ritual eleitoral vieram com a República: eleição dos governadores e dos presidentes da república. Comecemos pelos estados. Em escala muito variada aconteceram instabilidades para a instauração dos ciclos na esfera estadual – mas, grosso modo, elas diminuíram muito ainda na Primeira República. Houve ruptura completa na ditadura Vargas e uma curiosa ruptura parcial ao longo da ditadura militar: governantes estaduais indicados para aprovação do parlamento, mas ciclos de alternância do poder respeitados.

Considerado o tempo histórico como um todo, parece claro que a implantação do ciclo eleitoral tornou-se uma forma pacífica e eficiente para regular o poder político também nesta esfera estadual, apesar dos solavancos.

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Chegamos enfim ao alto. Falando em termos técnicos, a dificuldade de submissão do Presidente da República à soberania popular é maior que para qualquer outro tipo de governante no Brasil.

As resistências são de duas espécies. O governo central é o maior ninho de abrigo para ditaduras, para governantes que se impõem sem terem aval dos eleitores. Os períodos de dominância nesta vertente são maiores que em todas as demais instâncias de governo no país: oito anos de Estado Novo e vinte de governo militar, mais cinco de governos provisórios.

Além disso as rupturas internas no próprio ciclo também são grandes. Há um pouco de tudo.  Golpes dados por presidentes e contragolpes dados pelo vice (duas modalidades que se sucederam no breve intervalo de 20 dias logo no primeiro mandato presidencial republicano); vices que tentaram derrubar o titular (modalidade estreada por Manoel Vitorino, o vice de Prudente de Moraes, em 1896); morte ou suicídio de presidentes; arranjos esdrúxulos como o parlamentarismo de 1961; impeachments (dois em duas décadas, a partir de 1992).

Ainda assim, os períodos de governo de representantes eleitos são muito maiores que aqueles de donos do poder vindos de outras fontes.

Tirados os noves fora de tudo, caro leitor e eleitor, minha impressão é a de que o ritual do próximo domingo tem um peso importante no equilíbrio desta nação.

Tentei respeitar este peso do modo como posso. Desde minha estreia nesta coluna, em tempos de campanha, busquei fazer meu máximo esforço na posição de mais um cidadão, aproveitando o privilégio de poder me comunicar com outros cidadãos para reunir o que de melhor podia sobre a situação do Brasil no mundo, tentando formar um quadro que eventualmente orientasse na busca pela melhor alternativa.

No domingo todos depositaremos esperanças e escolhas na nuvem eletrônica que nos cerca cada vez mais.

De lá sairá uma primeira expressão da soberania popular. No momento da publicação da próxima colaboração, as expectativas de hoje já serão a história de ontem – uma situação mais apropriada para que um cidadão que lida com a história possa se pronunciar a respeito dela.

Bom voto a todos, na esperança de bom governo para nós, eleitores.

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