José Carlos Fernandes

Por uma teoria do objeto

José Carlos Fernandes
16/12/2018 20:00
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Arte: Felipe Lima

Se você assistiu ao filme O leitor, de Stephen Daldry, deve se lembrar de uma cena em particular. Ocorre nos minutos finais. Uma das personagens (Lena Olin) recebe de presente uma carcomida latinha de chá. Pertencia a sua mãe, morta décadas antes num campo de concentração nazista. O recipiente não só volta para sua legítima herdeira como está recheado de dinheiro, tesouro que a mulher despreza sem pudores. Prefere se agarrar ao objeto, como se por meio dele pudesse se ligar a uma tomada e reconectar o passado.
Não convém revelar mais, sob risco de bancar o desmancha-prazeres. O leitor é um daqueles longas que – perdoem o exagero – quem não viu não viveu (risos). Importa destacar na trama o que os estudiosos chamam de “verossimilhança”, palavra desengonçada para traduzir o que há de mais humano em nós. Perdoem o aparente surto de ingenuidade, mas, em tese, qualquer um faria o mesmo. Entre o dinheiro e um objeto que passou pelas mãos de quem amamos – uma relíquia –, ficaríamos com o segundo. A não ser que alguém tenha tijolos no peito.
Mentira? Conheço poucas pessoas cujas casas não tenham pelo menos um badulaque sem valor monetário, deixado nalgum balcão, criado-mudo ou parede, com uma única intenção – a de ser uma máquina de fazer lembrar. Em caso de incêndio ou despejo, faríamos das tripas coração para salvar uma peça afetiva, imantada de bem.
Não faz muito tempo, a atriz Vera Holtz deu um delicioso depoimento a respeito, ao jornal Folha de S.Paulo. Descreveu sua casa como um cenário apinhado de coisas – tantas que, mais do que um lar, o local lhe parecia uma “obra em formação”, dessas que fariam bonito numa bienal. Diz-se capaz de descrever de onde veio cada uma das peças, qual uma historiadora de insignificâncias. E confidencia que não raro, em surtos madrugada adentro, leva seus objetos “para passear”, mudando-os de cômodo, alterando-lhes o status. Vera avisa que tem parte com as coisas – e que acredita que, se chegaram até ali, é para que cuide delas.
Não está sozinha nesta crença animista, alquimista e, diriam alguns, esquisita. O dramaturgo irlandês Samuel Beckett se alistava entre os que respeitavam a estranha forma de vida dos objetos. Observador dos absurdos, o autor de Esperando Godot era não apenas um minimal de fina cepa, como um expert em metáforas. Para tanto, recorria aos inanimados, aos quais tratava com devoção, crente de que se moviam e falavam. Parece coisa de artista, de intelectual ou de Napoleão de hospício, não fosse a verossimilhança.
Atire a primeira pedra quem nunca se sentiu desafiado por uma tesoura fujona, um par de sapatos safado ou um pé de meia que “decidiu” sair para dar uma voltinha. Documentos não fogem à regra: desobedecem o lugar marcado. Livros? São os piores. Mais de uma vez na vida, pelo menos, qualquer mortal deve ter perguntado a uma chave “como é que você veio parar aqui?” Meses atrás, uma calça me pregou uma peça. Não me recordava de ter saído só de cueca por aí. Olhei embaixo da cama. Suspeitei que escalou o armário até o maleiro. Rezei a Salve Rainha. Perdi o sono, julgando-me doido varrido. Do nada, a dita apareceu, desaforada. Só faltou cruzar as pernas e acender um cigarro.
Não faz muito, achei um texto incrível sobre a poética – às vezes infernal – dos objetos dados a brincar de esconde-esconde, como se a gente não tivesse mais o que fazer. Miseravelmente, não guardei o nome do autor. Mas a leitura foi o bastante para que iniciasse um inventário sobre artistas, filósofos e escritores que se dedicaram a investigar a falsa inércia das coisas, cujo divertimento é nos pregar pegadinhas.
É obrigatório citar o francês Marcel Duchamp. As artes nunca mais foram as mesmas depois que ele levou rodas de bicicleta e mictórios para “um rolê” no museu. Abracadabra, deu à luz os ready made – objetos industriais que, ao serem deslocados no espaço, ganham outra leitura, mexendo com nossas percepções. Caso alguém faça coro com os que responsabilizam o artista pela decadência estética e pela incomunicabilidade das artes, lembre-se da panela de ferro que você fez virar vaso de planta, da garrafinha de Coca-Cola convertida em lugar de botar flor. Simples assim. Somos todos Duchamp. Todos Beckett. Todos Holtz – tiramos as coisas para dançar, em algum momento de serena insanidade. Um barato.
A artista plástica gaúcha Vera Lúcia Didonet Thomaz – radicada em Curitiba – fez do movimento das coisas uma pesquisa das mais originais. Intitulou-a “teatro monótono”, expressão mais-que-perfeita para traduzir o deslocamento de cadeiras, camas, armários, fotografias, pratos, panelas, chaves de fenda e o que mais o ferro, o plástico e a madeira puderem construir. Didonet observou a fundo umas tantas casas antigas prestes a serem demolidas. Infiltrou-se entre as caixas da mudança. E registrou a migração das traquitanas, corredor adentro, porão abaixo, sótão acima. São peças refugiadas.
Não raro, nesse vaivém perdem a serventia e ganham função decorativa e até litúrgica. Formam um cenário, daí o “teatro”; e bem devagarinho, por isso o “monótono”. Na casa de minha mãe a máquina de costura virou altar, mas também gatilho para alucinações: basta olhar o pedal para ouvir o barulho que fazia quando usado, e ser transportado à época em que dona Diva vinha costurar para a gente. Nem conto, para não alugar ninguém. A memória é cheia de nove horas.
A lista de discursos mais ou menos lúcidos sobre a “alma das coisas” é longa – passa pela subestimada novela Canoas e marolas, de João Gilberto Noll, a respeito do homem preguiçoso que perde a sua vida na falta de trabalho e se transforma em pedra. Vira objeto para sempre. Ninguém sabe, mas naquela rocha mora um sujeito. Acrescente-se o tocante filme Paterson, de Jim Jarmusch, que retrata um motorista de ônibus (Adam Driver) capaz de extrair versos beatniks da banalidade cotidiana. E até de trecos que não rimam com nada, a exemplo de uma caixinha de fósforos. Depois do filme, a gente nunca mais olha para um palito da mesma maneira.
De todas essas rendições diante do mistério dos objetos, com folga a mais impressionante é a produzida pelo pensador francês Gaston Bachelard. Conhecido por sua contribuição à epistemologia, permitiu-se, a folhas tantas, dedicar-se à imaginação, “a louca da casa”. Dizia ser sua “obra noturna”, posto que se desenvolvia em meio às sombras do conhecimento formal. Em seu ensaio Poética do espaço, Bachelard trata da casa – onde nossos sonhos são depositados nos travesseiros que dormimos – e da paisagem, que nos permite ver o mundo no horizonte. Mas nada impressiona mais do que o momento em que filosofa sobre as miniaturas e sobre as gavetas. As miniaturas, claro, são realidades portáteis; um mecanismo para colocar a vida na palma das mãos e rendê-la. Não à toa são usadas em jogos terapêuticos das caixas de areia, uma técnica para desarmar o inconsciente.
Quanto às gavetas, é onde nossos segredos estão postados. Quando morrermos, alguém vai abri-las e se perguntar quem somos a partir dos trecos que poupamos do lixo. Serão pencas de dúvidas e de revelações diante da visão de uma moeda antiga, de um telefone anotado, mas sem o nome de quem; do brinquedo da infância; da foto erótica; da pedra catada na rua; da carteirinha vencida da biblioteca… Haverá um postal do remetente desconhecido. A foto 3×4 de uma pessoa. Há quem se previna, claro, mantendo as gavetas assépticas, qual um hospital. Mas sempre haverá em algum canto um objeto à espera de ser decifrado. A caixinha de chá da personagem de O leitor.
A propósito – finda 2018, vamos às gavetas e às compras. Alguns presentes serão eternos.