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"O mapa do inferno", de Sandro Botticelli. Ilustração da Divina Comédia, de Dante Alighieri
"O mapa do inferno", de Sandro Botticelli. Ilustração da Divina Comédia, de Dante Alighieri| Foto:

“Pelo tom da resposta de Studdock, ninguém teria imaginado o prazer intenso que ele extraiu do uso, por parte de Curry, do pronome ‘nós’. Ainda muito recentemente ele era alguém ‘de fora’, que observava com espanto e pouco entendimento as atividades do que costumava chamar de ‘Curry e sua turma’ […] Agora ele estava incluído”. (C. S. Lewis, Uma força medonha)

 

É fato notório o quão perversa é a atração que o poder exerce sobre o ser humano. Inclusive, esse foi o tema de meu artigo da semana passada. Mas neste, gostaria, até como um complemento àquele, de tratar de um aspecto particularmente interessante dessa atração, que é o desejo de pertencer ao núcleo de influência de determinada instituição de poder; aquilo que o grande C. S. Lewis chamou de “círculo íntimo” (inner circle).

Numa palestra realizada em 1944, no Magdalene College, e publicada posteriormente em O Peso da Glória, Lewis fala dos riscos e consequências de ser tentado a penetrar em certas hierarquias que, não obstante serem informais, exercem um enorme poder nas relações humanas e nas instituições; as famosas panelinhas de escolhidos (e particularmente influentes). Explica Lewis:

“No trecho de Tolstoi que acabei de ler [de Guerra e Paz], o jovem segundo-tenente Boris Dubretskoi descobre que existem no exército dois sistemas diferentes, ou melhor, duas hierarquias. Uma é a que vem impressa em algum manual de regulamento que qualquer um pode ler e que se mantém constante. O posto de general sempre é superior ao de coronel; o de coronel, ao de capitão. O outro sistema não está impresso em lugar nenhum. Tampouco existe uma sociedade secreta formalmente organizada com regras que são reveladas a alguém que nela seja admitido. Ninguém é formal e explicitamente admitido por ninguém. Descobre-se aos poucos, por meios quase indefiníveis, que essa outra hierarquia existe e que se está fora dela e, mais tarde, quem sabe, pode-se estar dentro dela. […] Quando está muito seguro e com a membresia comparativamente estável, ele se chama ‘nós’. Quando tem de se expandir de repente para atender a determinada emergência, chama-se de ‘todas as pessoas sensatas deste lugar’. Do lado de fora, quando se perdeu a esperança de passar para o lado de dentro , chama-se de ‘essa gangue’, ou de ‘eles’, ou de ‘fulano de tal e seus asseclas’, ou ‘a Panelinha’, ou o ‘Círculo Íntimo’. […] De todas as paixões, a paixão pelo Círculo Íntimo é a mais habilidosa em fazer com que um homem que ainda não é muito mau faça coisas muito más”.

Com essa descrição, Lewis inicia uma série de observações – “vou fazer algo mais fora de moda do que talvez estejam esperando. Vou lhes dar conselhos”, diz ele – a respeito dos perigos de sermos seduzidos pelos círculos íntimos, apesar de serem absolutamente normais e frequentes nas relações humanas. A questão, como ele diz, é “o que dizer de nosso anseio por ingressar neles, nossa angústia ao sermos excluídos e o tipo de prazer que sentimos quando neles ingressamos?” Eis o perigo: o momento em que – vale parafrasear – um homem que ainda não é muito mau passa a fazer coisas muito más.

As panelinhas, quando ligadas a instituições de poder, são ainda mais desejadas, pois, caso façamos parte delas, também passamos a ser agentes de sua influência; nossa voz terá um “peso”; o que dissermos será endossado pelo grupo e valerá muito mais do que uma opinião isolada. Por exemplo, um grupo de influência num governo, fatalmente, acaba por governar.

Lewis mesmo criou um exemplo literário perfeito para denunciar a sedução e influência dos círculos íntimos. Trata-se de Uma força medonha, o último livro de sua trilogia de ficção científica – os demais são Além do Planeta Silencioso e Perelandra. A história se passa numa universidade (e não em outro planeta, como é o caso dos outros livros), palco de uma trama cujo intuito é criticar o avanço das ideias cientificistas que ganhavam proeminência, principalmente, pelas obras de H.G. Wells, Olaf Stapledon e J.B.S. Haldane, cujos livros Lewis apreciava, apesar de discordar. Ele esclarece suas intenções no prefácio: “esta é uma história incrível sobre a perversidade, não obstante subjacente a ela exista um ‘ponto’ sério que tentei esclarecer em minha Abolição do homem. Na história, era preciso mostrar os limites dessa perversidade tocando a vida de algumas pessoas de profissão normal e respeitável”. Ou seja, seu principal objetivo é expor, ao longo dessa obra – que se passa na universidade fictícia de Edgestow, mais especificamente na Faculdade de Bracton, na Inglaterra –, todo o pedantismo científico que ele julgava maligno, como a história de Mark Studdock e seus colegas do Instituto Nacional de Experimentos Coordenados (Inec) acaba por demonstrar.

A citação de sua obra A abolição do homem é digna de nota. Nela, Lewis investe pesadamente, e com destreza filosófica ímpar, contra o materialismo e o cientificismo. E Uma força medonha é seu correspondente literário.

Os protagonistas são Mark e Jane Studdock, um casal de intelectuais de meia-idade, cuja relação flutua entre a infelicidade e a indiferença. Mark é sociólogo, e conseguiu uma bolsa de pesquisador no Inec, enquanto Jane adiava a conclusão de um projeto de doutorado em John Donne, a fim de se dedicar à “família”. Os dois seguem, portanto, caminhos diametralmente opostos. A obstinação de Mark é algo incompreensível para a letárgica Jane; inclusive, essa oposição de ânimo entre os dois é um dos grandes trunfos literários de Lewis, pois, enquanto Mark desce aos infernos conforme vai penetrando nos círculos íntimos do Inec, Jane ascende aos céus indo de encontro às forças do Bem em St. Anne’s – local onde se concentra a resistência ao projeto maligno dos cientistas de Bracton.

O Inec é uma organização semi-secreta surgida no pós-guerra, cuja atividade pública era buscar o progresso científico em direção a um “mundo melhor”. Porém, suas reais intenções, como descrita por Lord Feverstone, são muito mais profundas (e nefastas). Ao ser interpelado a esse respeito, Feverstone responde: “Coisas inteiramente simples e óbvias, primeiro: esterilização dos incapazes, liquidação das raças atrasadas (não queremos pesos mortos), reprodução seletiva. Depois, educação autêntica, incluindo educação pré-natal. Por educação autêntica quero dizer uma que não tenha faltas de senso do tipo ‘pega ou deixa ficar’. Uma educação autêntica faz do paciente aquilo que ela quer, infalivelmente: façam o que fizerem ele ou seus pais. Claro que no início terá de ser principalmente psicológico. Mas chegaremos ao condicionamento bioquímico, e, finalmente, à manipulação direta do cérebro. […] Será a chave de tudo, enfim. Um novo tipo de homem”.

É nesse ambiente que Mark Studdock se vê imerso, um antro de perversão travestida de ciência, no qual a busca pelo bem da humanidade é só um pretexto para um projeto totalitário de poder. O Inec é, na verdade, um celeiro de figuras diabólicas, tais como o inescrupuloso vice-diretor Wither; a sádica Fada Hardcastle, chefe da Polícia do Inec; o gnóstico Straik, cujos discursos, recheados de referências bíblicas, soam claramente blasfemos; e o repulsivo professor Filostrato, cujo maior feito científico é ter conseguido manter viva uma cabeça sem corpo, que os membros do Inec chamam de… “O Cabeça”. Posteriormente nos é revelado, para espanto de todos, como essa cabeça é mantida viva.

Uma força medonha é uma fábula distópica e ácida, mas também cheia de beleza, na qual Lewis desfere golpes certeiros contra o pedantismo cientificista. Mas contém um alerta incisivo e precioso sobre a perigosa sedução dos círculos íntimos, que podem nos levar a fazer coisas que, em condições psicologicamente normais, não faríamos, e a cedermos a impulsos malignos que, uma vez iniciados, dificilmente conseguiremos controlar.

Estejamos atentos!

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