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"Alegoria da Caverna de Platão", por Jan Saenredam, baseada em Cornelis van Haarlem (1604).
"Alegoria da Caverna de Platão", por Jan Saenredam, baseada em Cornelis van Haarlem (1604).| Foto:

“Educação é […] tirar do espírito as faculdades nele contidas em germens, as potências, as virtualidades, as aptidões, e trazê-las à luz por uma cultura geral e harmônica, por uma série de processos bem ordenados e racionais, fazendo triunfar o homem do animal, a humanidade da animalidade, as paixões nobres, os instintos elevados das inclinações e rudes tendências da natureza animal.” (Ernesto Carneiro Ribeiro, médico, filólogo e educador)

No artigo da semana passada tratei brevemente de como as pedagogias modernas – ideológicas, por assim dizer – foram responsáveis, em grande medida, por destruir a educação. Usei como exemplo o filme Sociedade dos poetas mortos e a figura de seu protagonista, o professor John Keating, vivido pelo falecido Robin Williams, para mostrar como essa pedagogia permissiva e utópica, baseada na mera satisfação dos sentimentos – não na ciência e no conteúdo do saber acadêmico –, leva à morte. Afirmei que o professor Keating sofre de um tipo de doença analisada pelo escritor Robert Musil, a estupidez pretensiosa, cujos sintomas são uma ameaça à vida – sua e dos outros.

Retomo o conceito de Musil, mas através da leitura que dele fez o filósofo Eric Voegelin em sua obra Hitler e os alemães, transcrição de uma série de preleções realizadas em 1964 na Universidade Ludwig Maximilian, de Munique. A preocupação de Voegelin é descobrir quais fatores contribuíram para a ascensão de Adolf Hitler ao poder. Hitler, um tipo estúpido, medíocre, só pode ter sido eleito por uma sociedade acometida da mesma estupidez. Por isso, dentre outras coisas, Voegelin analisa o conceito de Musil e a ele acrescenta algumas características ainda mais nocivas, a da estupidez criminosa. Ele afirma: “A estupidez deve significar aqui que um homem, por causa de sua perda de realidade, não está em posição de orientar corretamente sua ação no mundo em que vive” (p. 121 da edição da É Realizações). Sem tal orientação, uma espécie de revolta egolátrica toma o lugar daquela humildade do “vermezinho de Jacó” (Is 41,14), tão bem descrita pelo profeta bíblico; soa em nossos ouvidos a voz sedutora – “sereis como Deus” – que nos faz agir como se fôssemos nós mesmos os criadores do mundo.

O que Voegelin chama de “perda da realidade” é, precisamente, o esquecimento de que não somos causa de nós mesmos, de que vivemos uma tensão em direção ao fundamento de nosso ser. Platão chama a essa tensão de metaxy – participação. Todo ser humano vive essa tensão – pois possui a Imago Dei –, e ela é a responsável por nosso equilíbrio no mundo. Nossa dignidade e nossa ação no mundo dependem dessa tensão. Diz Voegelin: “A perda de dignidade vem através da negação da participação no divino, ou seja, através da desdivinização do homem. Mas já que é precisamente essa participação no divino, esse ser teomórfico, que constitui essencialmente o homem, a desdivinização é sempre seguida de uma desumanização” (p. 118).

Veja, caro leitor, isso não tem que ver com religião, com frequentar uma igreja ou, quiçá, nem mesmo crer em Deus. Tem que ver com a consciência de que 1) o mundo já existia quando eu nasci; 2) não sou a causa de mim mesmo; 3) uma ordem maior do que eu parece ter trazido as coisas até aqui; 4) é preciso compreender apropriadamente o que existe para depois certificar-me de que/quais mudanças são necessárias. Desprezar esses princípios básicos, que, inclusive, podem ser seguidos por qualquer pessoa – religiosos, ateus ou agnósticos –, causa desordem interior e caos social.

Uma sociedade formada por indivíduos em tal situação, ou, pior ainda, governada e educada por indivíduos cujas naturezas renderam-se ao materialismo messiânico, às ideologias utópicas e às paixões revolucionárias – todos efeitos da perda da realidade –, está fadada a viver em desordem. Somos, em todo tempo, seduzidos pela arrogância espiritual (hybris) que nos coloca em confronto direto com a ordem da realidade. Desse modo, é fácil sermos dominados por ególatras, por populistas aproveitadores, ou mesmo por facínoras bem ou mal intencionados.

A falência total de nossas instituições é um reflexo disso. Nossas escolas e universidades se tornaram meros laboratórios para experiências sociológicas; nossa política foi tomada por homens que se veem plenos de direitos sobre uma população totalmente subjugada e dependente; nossa convivência social, se avaliada pela descrição que faz o filósofo italiano Giovanni Pico Della Mirandola, quando descreve nossa virtude do livre arbítrio em seu tratado Discurso sobre a dignidade do homem – “Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo” –, é fácil saber qual escolha fizemos.

Para sairmos dessa situação só há um caminho, dificílimo, caro leitor, mas não impossível. Quem nos indica é o próprio Eric Voegelin em suas Reflexões autobiográficas (É Realizações): “Recuperar a realidade, resgatando-a da deformação a que foi submetida, exige bastante trabalho. É preciso reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade. É preciso, ao mesmo tempo, investigar a técnica e a estrutura das deformações que se acumulam no dia a dia. E é preciso desenvolver conceitos que permitam agrupar em categorias a deformação existencial e sua expressão simbólica” (p. 143).

O projeto de Voegelin é ousado, é tarefa para um filósofo experiente, e ele próprio investiu todos os seus esforços intelectuais nisso, durante toda sua vida. No entanto, para nós, cidadãos comuns, é perfeitamente possível “reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade”; isso nada mais é do que paidéia (educação) platônica, tão bem sintetizada na famosa Alegoria da Caverna – também conhecida como o Mito da Caverna –, eixo central de sua principal obra, A República. A Alegoria da Caverna é a reunião simbólica de todas as ideias platônicas; mas, para nosso intento, seu aspecto pedagógico é fundamental.

Homens presos, praticamente imóveis, desde pequenos, ao fundo de uma caverna. Estão de costas para a saída que, ao longe, não lhes oferece nenhuma luz. Atrás dos prisioneiros está uma fogueira e, entre a fogueira e os homens, um muro e um fosso, por onde passam pessoas carregando todo tipo de objetos – estátuas de homens e animais, utensílios etc. –, mostrados por cima do muro e projetando suas sombras na parede ao fundo da caverna. Os prisioneiros pensam que a realidade são aquelas sombras. Um dia, um deles é solto e forçado a sair da caverna. Ao sair, não consegue olhar as coisas por conta da luz do sol. Com o tempo ele se acostuma, começa a olhar as imagens refletidas na água e enxergar as coisas, diretamente, à noite; até que, por fim, passa a enxergar tudo às claras, bem como o próprio sol em todo o seu esplendor.

E é o próprio Platão quem nos explica: “Agora, meu caro Glauco, precisarás aplicar essa alegoria a tudo o que expusemos antes, para comparar o mundo percebido pela visão com o domicílio carcerário, e a luz do fogo que nele esplende com a energia do sol. Quanto à subida para o mundo superior e a contemplação do que lá existe, se vires nisso a ascensão da alma para a região inteligível, não te terás desviado de minhas esperanças, já que tanto ambiciona conhecê-las. Só Deus sabe se está de acordo com a Verdade. O que eu vejo, pelo menos, é o seguinte: no limite extremo da região do cognoscível está a ideia do Bem, dificilmente perceptível, mas que, uma vez apreendida, impõe-nos de pronto a conclusão de que é a causa de tudo que é belo e direto, a geratriz, no mundo visível, da luz e do senhor da luz, como no mundo inteligível é dominadora, fonte imediata da verdade e da inteligência, que precisará ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria, tanto na vida pública como na particular” (517 b, c).

Ou seja, o conhecimento é o árduo caminho pelo qual a alma sai da escuridão das aparências e ruma em direção à Luz da Verdade, à Ideia do Bem. Mais do que isso: para Platão, a educação é uma conversão da alma ao Bem, é despertar a faculdade do conhecimento que já está na alma e converter-se, daquilo que é perecível para o que é imperecível: “A educação não será mais do que a arte de fazer essa conversão, de encontrar a maneira mais fácil de consegui-la; não é a arte de conferir vista à alma, pois vista ela já possui; mas, por estar mal dirigida e olhar para o que não deve, a educação promove aquela mudança de direção” (518 d).

Platão ainda afirma que tal projeto só terá sucesso se aqueles, uma vez chegados ao conhecimento da verdade, voltarem e libertarem os demais (519 c, d).

E o que é essa trajetória senão a recuperação da existência (liberdade), da experiência (das trevas à luz), da consciência (da mentira à verdade) e da realidade (da aparência à realidade)? O que a pedagogia platônica nos oferece, portanto, é uma restauração da ordem da alma e da sociedade. Toda educação deve ter esse – e somente esse – objetivo. Sem isso, permaneceremos na caverna, acorrentados por oportunistas, enxergando somente sombras produzidas por seu fogo ideológico, incapazes sequer de alimentarmo-nos sem a ajuda de algozes que nos juram que esse é o melhor dos mundos.

E o Lula? Ora, busquemos a educação e a liberdade, e, em algumas décadas, não precisaremos mais falar em Lulas, Aécios, Têmeres, Renans…

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