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Michelangelo, "Criação de Adão" (Capela Sistina)
Michelangelo, "Criação de Adão" (Capela Sistina)| Foto:

À Iane Kestelman

“Quanto à espécie de alma de maior autoridade em nós, devemos aceitar a ideia de que ela nos foi dada por Deus à guisa de gênio protetor: exatamente o princípio que apresentamos como presidindo no vértice do corpo, e que nos transporta da terra para nossa afinidade celestial, por não sermos planta de raízes terrenas, porém celestes, o que afirmamos com maior convicção, por haver a divindade ligado nossa cabeça a nossa raiz à sede primitiva da alma, deixando, assim, o corpo em posição ereta”. (Platão, Timeu)

Em meu segundo artigo sobre educação, neste blog, defendi que, para sairmos da situação caótica na qual nos encontramos, seria necessário recuperar a realidade, no sentido aplicado pelo filósofo teutoamericano Eric Voegelin: “reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade”. Gostaria de apresentar algumas considerações para essa proposta, a começar pela recuperação do fundamento da existência. Os demais itens virão em artigos futuros.

Semana passada, assisti a dois vídeos estarrecedores, que demonstram, exatamente, em perfeição apodítica, a manifestação daquilo que Voegelin, ao longo de suas obras, chama de Segunda Realidade: “a imagem da realidade criada pelos homens quando em estado de alienação”; estado de alguém que “perde a razão e o espírito como aquelas partes da realidade que o ajudam a ordenar-lhe a existência”. (Reflexões autobiográficas, É Realizações).

O primeiro vídeo é da professora Márcia Tiburi, no culto lulista de militantes acampados em Curitiba. A extrema-feminista de extrema-esquerda inicia seu discurso dizendo: “Boa tarde a todas e a todos e a todes” – indicando, desde o início, que não se pronunciaria em língua portuguesa. Daí veio o delírio – cometido por quase 30 minutos, mas do qual só pincei o início:

“Nós o amamos [ao Lula], o amamos com um tesão saudável, com muito amor no coração, com um amor cheio de todas as religiões, de todas as sexualidades, de todos os gêneros, de todas as raças, cheio de libertação… E, infelizmente, essa galera que o prendeu também o ama; mas o ama de um ódio ressentido, e isso dá um tesão – gente, cês não fazem ideia… Quando um fascista fica com tesão por uma pessoa, dá mal: dá estupro, dá vilipêndio, dá conspurcação, dá prisão injusta, sem crime. Isso já tinha acontecido com a Dilma Rousseff, quando começou esse golpe antes de 2016, quando tudo começou e vocês já sabiam onde a coisa ia; e vocês sabem que o lance é sádico! Então, nós amamos o Lula com nossa saúde, com a nossa inteligência, com a nossa vontade de mudar o Brasil; a gente ama o Lula com o nosso respeito à Constituição, como o respeito à justiça, com o respeito à dignidade humana, com o respeito à presunção de inocência. E, essa galera ama o presidente Lula, também. Mas ama com ódio. É um negócio que na psicanálise a gente chama de amor-ódio… É verdade, gente! Pior é que é muito triste, porque é um amor misturado com ódio, que, em termos técnicos a gente chama de sadomasoquismo. Eles ‘tão, assim, se locupletando nesse negócio delirante em torno do presidente, todo mundo querendo ser tocado pelo presidente, visto pelo presidente para encontrar um lugar ao sol”.

Ainda que eu fosse contra a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, jamais seria a favor de tal discurso, pois não se trata de algo dito com vistas à realidade. Não se trata de uma contestação argumentativa, jurídica, moral ou mesmo filosófica a respeito da prisão do ex-presidente – condenado em praticamente todas as instâncias necessárias para que se faça cumprir a lei e a justiça –, mas tão somente um amontoado de clichês ideológicos que intentam somente falar ao coração da militância, produzir um efeito catártico, de purgação das emoções. E dizer as maiores absurdidades em pretenso linguajar acadêmico – “é isso que em psicologia…”, “que em termos técnicos quer dizer…” – também não resolve. Não há nada real no que diz Tiburi, exceto a prisão de Lula; o resto é puro delírio – e não é preciso ser um expert para perceber. Seus ouvintes não foram convidados a ouvir um depoimento, mas incitados à irracionalidade emotiva dos instintos. Curiosamente, o modo como Tiburi acusa seus inimigos, de estarem se locupletando num “negócio delirante em torno do presidente”, é, sem tirar nem pôr, o que está ocorrendo naquele acampamento – pois todo mundo ali não quer outra coisa senão “ser tocado pelo presidente, visto pelo presidente para encontrar um lugar ao sol”.

Um espetáculo grotesco.

O outro vídeo não é menos espantoso. Trata-se da entrevista do advogado Pedro Estevam Serrano ao comentarista esportivo Juca Kfouri – que, como bom ex-militante da ALN, mistura suas paixões políticas ao seu ofício jornalístico. Kfouri apresenta o programa Entre Vistas no canal TVT, emissora ligada ao Sindicato dos Metalúrgicos de SBC. Ele afirma tratar-se de “um programa de entrevistas sobre o que está acontecendo no dia a dia do Brasil”. Mas, pelo local de produção e pelo apresentador, não é preciso dizer qual o teor das entrevistas e nem a perspectiva política dos convidados.

Em sua participação, Serrano, que é professor de Direito Constitucional da PUC-SP, sócio do badalado escritório Teixeira Ferreira e Serrano Advogados Associados e ex-advogado da Odebrecht – conhecido por um suspeitíssimo encontro em 2015 com José Eduardo Cardozo, à época ministro da Justiça, quando as coisas começaram a esquentar para a construtora –, disse coisas tão surreais quanto Márcia Tiburi, com direito a arroubos e gesticulações cheias daquela teatralidade que só vemos nos advogados de filmes:

“É isso que nós estamos vivendo, nós temos que entender: a estrutura de exceção é extremamente injusta e persecutória! E persegue o Lula por uma série de características: é o presidente pobre; pela questão étnica, é nordestino – o Sul não gosta de nordestino –, essa é uma realidade; há preconceito contra nordestino no Sul e Sudeste do país, ele é vítima disso, porque é só julgado por brancos do Sul e Sudeste. Vejam, isso tudo conflui! O inimigo é étnico, o inimigo tem uma classe social, o inimigo representa a perspectiva de perder o controle – nós estamos num país no qual 20% da população, se muito, é branca, vive com medo constante de perder o controle e os privilégios que tem! […] Esse elemento nós temos que observar, a única chance que civilidade que nós tivemos na nossa história, foram dois momentos: a Constituição de 88 e esse período do governo Lula, que obedeceu a Constituição de 88. […] O caso do Lula não é o Lula, estamos tratando da nossa alma como sociedade; do nosso espírito, da nossa história, das nossas profundas contradições, do nosso lado sombrio; é isso que nós estamos lidando nesse caso”.

Inacreditável, não? Pois é. Essa verborreia exaltada fez Juca Kfouri terminar o programa com a voz embargada, olhos marejados, como se tivesse presenciado a abertura dos selos do Apocalipse.

Mas qual a característica fundamental desses dois discursos? As emoções afloradas? Certamente. Mas, fora a constatação de estarmos no terreno daquilo que o filósofo romeno Vladimir Tismaneanu chamou de Religião Política (Do Comunismo, Vide Editorial), do culto messiânico, há algo mais profundo nesse comportamento, algo mais fundamental e perigoso: a perda da realidade. Tiburi e Serrano estão em plena alucinação psicótica, pois o que dizem não corresponde à realidade dos fatos. Mas também não são conjecturas, são delírios. São discursos proferidos não na realidade objetiva, mas numa pseudorrealidade, criada com “precipitados psíquicos de antigas relações com ela [a objetiva]”, nas palavras de ninguém menos que Sigmund Freud. O pai da psicanálise, que percebe a manifestação das neuroses e psicoses em duas etapas, diz, em seu artigo A perda da realidade na neurose e na psicose, publicado em 1924, que na psicose a função da primeira etapa é arrastar “o ego [o freio moral da realidade] para longe”. E o segundo passo “destina-se a reparar a perda da realidade; contudo, não às expensas de uma restrição com a realidade – senão de outra maneira, mais autocrática, pela criação de uma nova realidade que não levanta mais as mesmas objeções que a antiga, que foi abandonada. […] Assim, a psicose também depara com a tarefa de conseguir para si própria percepções de um tipo que corresponda à nova realidade, e isso muito radicalmente se efetua mediante a alucinação”.

A descrição de Freud corresponde ao que o filósofo e psiquiatra Karl Jaspers, em seu monumental Psicopatologia Geral (Atheneu), chama de delírio, cuja característica principal é “a perda da consciência do ser e da existência […], uma transformação na consciência global da realidade”. Tiburi e Serrano estão a produzir ideias delirantes, fruto de seu falso juízo da realidade. São ideias “que remontam, na fonte, uma vivência patológica primária ou exigem, como pressuposição de sua explicação, a transformação da personalidade. […] As ideias delirantes são produtos de cristalização, de forma alguma centralizados num ponto, provenientes de vivências delirantes confusas, de autorreferências difusas, enigmáticas”.

Estes curiosos diagnósticos de Freud e Jaspers vão ao encontro das reflexões filosóficas de Eric Voegelin sobre os movimentos ideológicos do século 20. Para ele, os ideólogos são pessoas que perderam o contato com a realidade e, a partir de sua alienação, constroem sistemas que não correspondem a ela, mas a “segundas realidades”. Tal perda se dá pela recusa da tensão existencial em direção ao fundamento divino do ser. Diz ele, em seu Anamnese (É Realizações):

“Quando uma pessoa se recusa a viver na tensão existencial em direção ao fundamento, ou se ela se rebela contra o fundamento, recusando-se a participar na realidade e, assim, a experimentar sua própria realidade como homem, não é o ‘mundo’ que é mudado por isso; ao invés, é ela que perde o contato com a realidade e sofre uma perda de conteúdo da realidade em relação à sua própria pessoa. No entanto, a esse respeito, ela não cessa de ser homem; e já que sua consciência continua a projetar uma forma de realidade, ela gerará imagens substitutas de realidade, a fim de obter ordem e direção para sua existência e ações no mundo. Em consequência, ele vive numa ‘segunda realidade’”.

Esse não é um fenômeno novo e nem circunscrito a Tiburi e Serrano. Praticamente todo o ambiente acadêmico é dominado por gente assim. A imensa maioria dos intelectuais acadêmicos e midiáticos da atualidade é de ideólogos a serviço de uma utopia inconsequente que só faz mal ao mundo – e cada vez mais mal. Essa visão reducionista da existência, por exemplo, ao caráter meramente econômico – “toda a história da humanidade tem sido uma história de lutas de classes” –, cuja necessidade mais urgente seria fazer justiça social, reparar os desmandos da burguesia e converter a tensão espiritual em direção do fundamento em consciência de classe (livrando a humanidade do ópio do povo), só teve um efeito concreto: morte – física e espiritual.

Ignorar a origem e o destino humanos, reduzir todas as nossas aspirações às conquistas materiais, enxergar os complexos processos civilizatórios como meras disputas por poder econômico e tentar corrigi-los por meio de revoluções… Todas essas sandices ignoram que a vida é um dom, que o ser humano é imperfeito e deve buscar, humildemente, ascender espiritualmente em direção ao Verdadeiro, ao Belo e ao Bem. E, para não precisarmos entrar no campo da religião propriamente dita (não é esse o nosso propósito), ouçamos os filósofos antigos, pois, como disse Voegelin: “A melhor forma de retomar o contato com a realidade é recorrer a pensadores do passado que ainda não a tinham perdido ou estavam empenhados em recuperá-la”.

Foi Sócrates que, superando a perspectiva dos Jônios – que se afastaram dos Mitos buscando uma origem material para todas as coisas –, volta-se à reflexão sobre a vida como uma dádiva dos deuses. Num diálogo com o sofista Eutidemo, registrado por Xenofonte em seu Memoráveis (Universidade de Coimbra), demonstra a necessidade de respeitarmos, prudentemente, a vida e os favores da providência divina. Após discorrer sobre como os deuses nos provêm com o dia e a noite, com animais e vegetais para nossa alimentação, com a água, o fogo, a percepção estética e, por fim, a “capacidade de raciocinar”, conclui:

“Até tu hás de perceber que eu digo a verdade, se não estiveres à espera de ver a aparência física dos deuses, e te conformares, contemplando as suas obras, com os adorar e os honrar. Pensa que os próprios deuses nos indicam esse caminho, pois, quando nos oferecem os seus benefícios, fazem-no sem se mostrar aos nossos olhos, mas também aquele que ordena e governa todo o universo, no qual reside toda a beleza e toda a bondade, e que, para nosso interesse, as mantém intactas, saudáveis e sem velhice, servindo-nos sem qualquer falha mais rapidamente que o próprio pensamento, este deus manifesta-se como o realizador das maiores obras, mas administra-as sem que as possamos ver […] E mais, até a alma do homem, que participa do divino mais do que qualquer outra das faculdades humanas, é evidente que reina em nós, mas ninguém pode vê-la. Refletindo sobre todos estes assuntos, é preciso não desprezar o que não se vê e, antes, reconhecendo nos seus sinais o seu poder, é preciso honrar a divindade”.

Posteriormente, Platão, Aristóteles, os filósofos helenísticos, toda a Patrística (evidentemente) e a Idade Média seguiram os passos de Sócrates e, com algumas raras exceções ao longo da história, concordavam que o ser humano não é causa de si mesmo. Mas a investida moderna contra a metafísica, impulsionada, em grande medida, por Kant, e levada a termo pelos grandes influenciadores do pensamento acadêmico contemporâneo – tais como Nietzsche, Sartre, Foucault e, claro, Marx –, fez com que todo o currículo das Humanidades sofresse um golpe de morte. A metafísica foi praticamente expulsa da Academia; e mesmo os estudos teológicos são, cada vez mais, meras análises socioantropológicas.

Só há uma maneira de “recuperar o fundamento da existência”: reconhecendo, inclusive academicamente, que toda especulação que rejeita indiscriminadamente a metafísica e os pressupostos que apontam para um plano divino da existência deve ser vista como uma maneira de ver o mundo e não a única. Assim, recuperando a prudência do debate e a humildade de nossas pretensões, estaremos no caminho certo para resgatar a Educação no Brasil.

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