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Cinco estatuetas

“Anora”: o grande campeão do Oscar 2025 merece ser visto na Quaresma

A atriz vencedora do Oscar Mikey Madison faz a dançarina erótica que dá nome ao filme
A atriz vencedora do Oscar Mikey Madison vive a dançarina erótica que dá nome ao filme (Foto: Divulgação Universal)

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Anora é um filme surpreendente. Não pelos Oscars conquistados, ganhando cinco das seis categorias em que concorria, perdendo apenas na de ator coadjuvante. Foi considerado o melhor filme, a melhor direção, o melhor roteiro original, a melhor montagem e dono da melhor atriz. É o filme em si que surpreende. Se o leitor ainda não o assistiu, alertamos da presença de spoilers no que seguirá.

Nos seus primeiros 30, 40 minutos, parece anunciar uma versão atualizada (e adolescente) de Uma Linda Mulher, o icônico filme de 1990, com Julia Roberts interpretando uma garota de programa contratada pelo milionário interpretado por Richard Gere, com ambos se apaixonando e vivendo uma comédia romântica.

Em Anora, Mikey Madison interpreta Ani, a “Cinderela” que aparentemente encanta e se encanta pelo “príncipe” Vanya, interpretado por Mark Eydelshteyn. Porém, se Ani guarda alguma semelhança com Vivian (Julia Roberts), Vanya não tem nada a ver com Edward (Richard Gere), sendo o filho mimado de um milionário oligarca russo, completamente imaturo e irresponsável que, na hora de enfrentar a realidade de sua escolha por Ani, foge e desiste de forma patética.

É a partir daqui que o filme começa a surpreender, e muito: o que parecia o início de mais uma típica e tediosa comédia romântica vai se tornando uma sátira quase “tarantinesca”, equilibrando com maestria humor e drama até sua surpreendente, triste e bela cena final. Só então é possível compreender o por que do título ser Anora, o nome real de Ani.

Uma trupe de imaturos

Toda sátira é uma crítica, quase sempre ácida, de uma dada realidade a partir de um ponto de vista moral, em geral não explicitado, mas perfeitamente dedutível. A realidade da prostituição é a vivência de uma falsa situação de sedução e conquista que, no filme, resulta na mentira de um relacionamento amoroso. Quando a família de Vanya entra em cena, essa falsidade e mentira são escancaradas de forma brutal pela rapidez com que Vanya abandona Ani.

Já a ilusão de que Ani havia se apaixonado por Vanya sequer foi criada, pois quando ela se despediu da boate em que trabalhava, explicitamente tratou o fato como se tivesse ganhado na loteria, não no amor. Todas as tentativas dela em fazer Vanya defender o casamento deles são por interesse próprio, ainda que vislumbrasse a possibilidade de amar Vanya de verdade. No fim, saiu com muito menos do que esperava, financeiramente falando, o que é parte da razão pela qual cai em prantos na cena derradeira.

Mas o filme não se reduz a isso. Quando entramos na parte da busca quase surreal pelo covarde Vanya, o filme conduz a narrativa pelas imagens. Ao largarem o carro em plena via, passando pela entrada no parque de diversões, com um enquadramento que faz os personagens aparecerem pequenos atrás de uma montanha-russa, chegando na loja de doces, enfim, tudo faz parecer que mesmo os “adultos” na cena não se comportam como tal, agindo também de forma imatura, quando não infantil, até quando estão diante de um juiz para tentar a anulação do casamento.

O nonsense tem seu auge quando o pai de Vanya cai na gargalhada depois de Ani escancarar a verdade da família gritando que o moleque só fez o que fez para atingir a mãe. É nesta hora que se revela também o quanto Ani, independentemente de seu egoísmo e interesse material, enxergava perfeitamente bem onde tinha se metido, o que de fato estava acontecendo, qual era a realidade contra a qual seria inútil lutar contra.

Luminosidade e brilho

Quando reunimos todas essas ilusões, falsidades, mentiras, autoenganos e nonsenses, percebemos que a sátira do filme é a tudo isso, ao vazio da vida preenchido pelo que a sufoca, seca, esteriliza, perverte. Mas o filme surpreende quando vemos que, no fim das contas, não é sobre isso também. A sátira é necessária para que a verdadeira história fosse contada, uma história que surge aos poucos e de forma coadjuvante até se tornar o centro.

O protagonista, na verdade, é Igor, um dos capangas da família, interpretado brilhantemente por Yuri Borisov. Ele se encantou com Ani à primeira vista. Repare nos olhares dele para ela, nas suas atitudes, no seu cuidado, na sua sensibilidade. Ele é o único a prestar atenção de verdade em Ani. E a protegê-la ao ponto de chegar a falar que Vanya deveria lhe pedir desculpas, depois de tudo resolvido. É ele quem faz lembrar o espectador do título do filme, dizendo que prefere chamar Ani de Anora, e pesquisa o significado do nome, que teria a ver com luminosidade e brilho.

Ani, porém, como não sabe lidar com um interesse genuíno por ela, não apenas por seu corpo, acaba “retribuindo” da única forma que conhece: dando de graça o que só entregava por dinheiro. Embora Igor não a recuse, tampouco avança, deixando-a fazer o que quiser. Eis mais uma atitude que a surpreende, chegando a revoltá-la. Ani dá até uns tapas em Igor até cair num choro sincero, desarmado, sofrido, entregando-se, enfim, ao abraço protetor dele.

O capanga Igor, interpretado brilhantemente pelo ator Yuri BorisovO capanga Igor, interpretado brilhantemente por Yuri Borisov (Foto: Divulgação)

Embora Igor não seja nenhum santo, modelo maior de virtude ou algo assim – demonstra-se violento quando mandado a tanto e não recusa o “pagamento” de Ani por seus cuidados –, suas atitudes amorosas contrastam de tal maneira com a iniquidade em torno e a baixeza moral dos demais personagens, que, em comparação, fica parecendo um perfeito cavaleiro de romances de cavalaria, tão heroico quanto casto. Ironicamente, o melhor do filme foi justamente o que não venceu no Oscar.

Mais ironicamente ainda – para horror do conservadorismo sectário que certamente condenará a obra pelas cenas de nudez, sexo e uso de drogas, e também para o progressismo desvairado que gostará justo dessas coisas – Anora é um bom filme para o tempo da Quaresma. Independentemente de você ser cristão, é uma época favorável para realizar um profundo exame de consciência, tentando ser alguém melhor começando por reconhecer o pior que há em si. É o ponto em que o filme termina, com Anora chorando pelo pior, mas no colo de alguém que pode ajudar a torná-la alguém melhor. Eis algo surpreendente nos dias nada castos de hoje. O Oscar de 2025 ficou em boas mãos.

  • Anora
  • 2024
  • 139 minutos
  • Indicado para maiores de 16 anos
  • Em cartaz nos cinemas

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