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Para fechar o palco principal da terceira edição do C6 Fest no próximo dia 24, a organização do evento escolheu uma banda cheia de hits. Don’t Get Me Wrong, Back on the Chain Gang, Brass in Pocket, Message of Love, Middle of the Road, Talk of the Town e Kid são apenas alguns dos sucessos que Chrissie Hynde, à frente do Pretenders, entoará no espaço montado no Parque do Ibirapuera, por onde ainda vão passar artistas como o ícone da disco music Chic e representantes do indie rock como Wilco e Gossip.
A expectativa, portanto, é de uma grande audiência, composta especialmente por um público saudosista do punk e da new wave que o Pretenders tão bem representou na virada dos anos 1970 para os 1980. Apenas um perfil não será encontrado na plateia quando Chrissie, do alto dos seus 73 anos, soltar sua voz cristalina que não envelheceu um dia sequer.
“Eu sou um outdoor do feminismo. Grito feminismo com todo o meu ser, mas agora as feministas me odeiam”, declarou a cantora e guitarrista ao lançar o penúltimo disco do Pretenders. Chrissie não está se referindo a todas as feministas, mas principalmente àquelas da nova geração, que se revoltaram com uma passagem de sua autobiografia, lançada há dez anos.
Em Reckless: My Life as a Pretender, mais precisamente no capítulo Tattooed Love Boys (nome de uma música que não pode faltar nos shows), a americana revelou que, quando tinha 21 anos, numa noite regada a drogas, envolveu-se com uma gangue de motoqueiros barra pesada e acabou sendo violentada. O problema é que ela começa o relato com a frase “Tecnicamente falando, não importa como você queira ver, tudo isso foi obra minha e assumo total responsabilidade”. E ainda arremata com um “Nunca culpo os outros pelas minhas transgressões”.
Pronto, foi o suficiente para que colunistas de jornal, influenciadoras feministas e programas de debate na TV caíssem de pau em Chrissie, pois “num estupro nunca a culpa é da vítima” (conforme muitos artigos defenderam). Uma articulista do The Guardian chegou a escrever “Tenho dó dela. Imagina se culpar for algo tão horrível por tanto tempo”. Chrissie não recuou. “Contei minha história pelo meu ponto de vista. Não estou aqui para dar conselho para ninguém ou me validar ou me justificar”, disse no Good Morning America.
Senso comum
Numa entrevista de divulgação do livro no The Sunday Times, ela aprofundou sua visão sobre como as mulheres não devem dar mole para não terminarem vítima de violência. “Se a mulher está sendo muito leviana, falando e sendo provocativa, ela pode estar seduzindo alguém que já é desequilibrado. Não faça isso! Qual é? Isso é senso comum. Acho que não estou dizendo nada controverso, estou?”
Estava – para uma parcela –, mas ela não fazia ideia disso. Essa linha de pensamento se encaixa no que é chamado de feminismo streetwise (ou street smart), que não isenta estupradores de nenhum ataque, mas prega que a mulher nunca se porte de maneira ingênua. No mesmo ano em que Chrissie lançou a biografia e enfrentou tal polêmica, Camille Paglia, talvez a autora feminista mais relevante dos anos 1980 e 1990 e atualmente odiada pela turma mais nova, deu uma entrevista para a Folha de S. Paulo que abria com a absurda pergunta: “você é feminista ou antifeminista?”
Camille, hoje com 78 anos e uma defensora do feminismo streetwise, pacientemente respondeu: “Sou 100% feminista, mas nada a ver com a geração atual, que culpa o homem por tudo.” Mais adiante, ela cravou: “É claro que ninguém tem o direito de fazer nada com você, mas só uma idiota acha que vai para as ruas com vestimentas provocativas sem correr o risco de ser atacada, culpando o Estado por isso”.

Uma das youtubers que gravou vídeo espinafrando Chrissie Hynde à época foi Rebecca Watson, que além de não compreender a forma de enxergar o mundo da artista, ainda recuperou um texto dela de 1994 chamado “Conselhos para roqueiras ou como eu cheguei lá”, que supostamente comprovaria seu total desprezo pelas mulheres e pelo feminismo. O único senão: tratava-se de algo irônico, uma zoeira de Chrissie. Mas, como a militância atual não compreende humor...
O tal texto, publicado na contracapa do single de Night in my Veins, trazia coisas como “Não insista em trabalhar com outras mulheres. Arrume os melhores homens para o trabalho” e “Depile suas pernas, pelo amor de Deus!”. Para ficar ainda mais claro de que aquilo não era algo para ser levado a sério, ela fechava dizendo “Não ouça conselhos de pessoas como eu. Siga o seu caminho.”
Coragem e inspiração
Por ser uma mulher de destaque numa cena repleta de machos, Chrissie sempre foi instada a opinar sobre o assunto, mas nunca se vitimizou ou embarcou em pauta de guerra dos sexos. Certa vez, declarou para o Guardian: “Sempre houve mulheres fazendo rock, mas não muitas. Não sei o que as feministas têm a dizer sobre isso. Ao longo dos anos, você ouvia: ‘Não fomos incentivadas’. Bem, não acho que a mãe de Jeff Beck dizia: ‘Jeffinho, o que você está fazendo no seu quarto? Está ensaiando aí em cima?’ Ninguém nunca foi incentivado a tocar guitarra em uma banda. Mas nunca achei mais difícil porque sou mulher. Na verdade, fui até tratada melhor por causa disso. Os caras carregavam minhas guitarras – quem vai dizer não para isso? E as afinavam também!”
Quem acompanhou sua ascensão nesse meio, sempre provocante no discurso e nas atitudes, não era capaz de sentir nada além de admiração. É famosa a reação de uma ainda anônima Madonna após ver um show do Pretenders no Central Park de Nova York, em 1980. “Chrissie era incrível: a única mulher que eu já tinha visto em uma apresentação que me fez pensar: ‘É, essa tem colhões!’... Chrissie me deu coragem, inspiração”, babou a futura popstar.
Ainda que algumas militantes mirins não consigam compreender o tamanho de Chrissie, ela segue sua caminhada, participando de protestos pelos direitos dos animais (a balada I’ll Stand by You fala da lealdade e do amor incondicional na relação com os bichinhos), defendendo sua dieta vegetariana e dando pitacos sempre que solicitada. Numa entrevista para O Globo, em 2020, ela se mostrou preocupada com a moda dos cancelamentos.
“Muitos amigos atores e músicos estão bastante nervosos de dizer qualquer coisa. Se você usa um termo errado, diz uma palavra que ofende alguém, isso deixa todo mundo agitado. Mas você também tem de se sentir livre para se expressar. A cultura do cancelamento é o assunto mais importante hoje. Ninguém mais pode ter opinião, todos são julgados o tempo todo.”
Ela sabe muito bem o que está falando. Antes de tocar no C6 Fest, Chrissie vai se expressar livremente com o Pretenders em Porto Alegre (18), Curitiba (20) e Brasília (22). Uma música que estará no repertório dos shows cabe bem para quem não aceita o seu jeito singular de pensar. Foi lançada pela banda The Kinks em 1964, regravada pelo Pretenders em 1979 e segue muito atual: Stop Your Sobbing (pare de choramingar).
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