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Maikon K, Elisabete Finger, Wagner Schwartz e Renata Carvalho | Gazeta do Povo
Maikon K, Elisabete Finger, Wagner Schwartz e Renata Carvalho| Foto: Gazeta do Povo

Quem foi assistir ao aguardado, ansiado e antecipadamente controverso espetáculo Domínio Público não encontrou qualquer tipo de balbúrdia na porta do teatro. A única movimentação mais animada era a dos tradicionais sem-ingresso à porta das peças do Festival de Teatro de Curitiba, em meio a uma chuva melancólica de véspera de feriado. De resto, o que se via no salão do Teatro da Reitoria era o de sempre: gente tirando foto para alguma coluna social, um ou outro idoso que escolheu aquela peça por engano e o indefectível ator global sendo tietado com cara de enfado. 

A plateia foi liberada para ocupar seus lugares com alguma demora. Podia ser que estivessem dando os últimos retoques no cenário ou até trocando um holofote queimado, mas não. Porque Domínio Público é exuberante em sua economia: não tem cenário, não tem interpretação, a direção se resume a alguns passos para lá e para cá, a iluminação é aquela mesma que está ali. Para artistas que se tornaram de alguma forma famosos por causa da relação com a nudez, curioso notar que estavam todos muito bem vestidos, com trajes apropriados até para uma reunião mais formal. 

Abrem-se as cortinas e aparece no palco a figura de Wagner Schwartz, ator que ganhou as manchetes deitando-se nu e sendo tocado por uma criança durante uma performance no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Com uma voz de ninar e segurando cartões de texto, Wagner se põe a falar sobre a Mona Lisa. Por extensos quinze minutos, mais ou menos, o espectador é obrigado a escutar vários lugares-comuns sobre a obra-prima de Leonardo da Vinci, entremeados pela exaltação a um bandido que os autores da peça, num deslize moral consciente ou não, acreditam ser herói: Vincenzo Peruggia, que roubou a Mona Lisa do Louvre e levou para a Itália no começo do século passado. Nesta primeira parte o ator, ao descrever as pessoas que andavam pela Paris de 1911, diz que na rua havia “homens, mulheres, crianças, [pausa dramática] travestis, homens trans, mulheres trans”. 

Em seguida entra no palco, munida de um iPad, a travesti Renata Carvalho. Ela também foi parar nos jornais após atuar como um Jesus travesti numa peça de teatro. Renata dá continuidade à aula sobre a Mona Lisa. Neste ponto, Renata defende a ideia de que Leonardo da Vinci não só era homossexual como também que a própria Mona Lisa talvez seja um homem. A plateia ri quando Renata faz menção aos traços supostamente masculinos da pintura. Para Renata – ou quem quer que tenha escrito o texto – a ambiguidade da imagem icônica tem necessariamente a ver com uma ambiguidade sexual. De repente, a obsessão pela sexualidade na Renascença se transforma num enfático discurso contra a Igreja Católica e a Inquisição. Renata fala em “limpeza étnica porque um grupo se tornou muito popular” e que “no paraíso a representatividade era para poucos”. 

Ainda faltava metade da “peça-aula”. Agora é a vez de Maikon K, outro ator que em algum momento fez alguma coisa que irritou alguém. É preciso ser justo: Maikon K ao menos respeitou a plateia decorando o texto inteiro e o declamando com algo que se assemelha remotamente a uma representação. Coube a ele fazer a análise semiótica da Mona Lisa. Lá no final da parte que lhe cabia, contudo, o ator menciona uma série de atentados contra o quadro, sempre dando a entender que a atitude de desmiolados ao longo de todo o século XX é também de alguma forma expressão artística. 

Coube a Elisabete Finger, também conhecida como A Mãe Que Permitiu Que Sua Filha Tocasse O Tornozelo Do Homem Nu, fazer a análise feminista da Mona Lisa, com direito a etimologia do nome. Elisabete fala como se acreditasse que é possível comparar sua relevância artística à obra-prima de Da Vinci. 

A peça termina com as luzes da plateia se acendendo e Elisabete perguntando se alguém tem algo a comentar. Ansiosos, apressados, perdidos, incrédulos ou querendo fazer jus ao dinheiro do ingresso, os espectadores começaram a aplaudir entusiasmadamente (houve quem gritasse “bravo!”) ainda no meio da execução de... Mona Lisa, na voz de Nat King Cole. 

Depois de 50 minutos de peça, a maioria das pessoas vai embora. Ainda há o debate final, no qual até que enfim se fala do elefante na sala: a presença daquelas quatro pessoas naquele palco só tem sentido porque elas estiveram envolvidas em casos nos quais se questionou a liberdade de expressão. De repente, Maikon K é arrebatado por uma sinceridade acidental. Ele revela que a peça foi feita a convite da organização do Festival de Teatro para aproveitar todo o furor que envolvia suas atitudes pretensamente ousadas e que, ao longo do desenvolvimento do espetáculo, ele se deu conta de que o tempo passou e a controvérsia esfriou – como sempre. “A timeline muda muito rápido”, disse.

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