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À medida em que a preocupação com a covid-19 se tornou mais e mais presente, a procura do público por Contágio também aumentou.
À medida em que a preocupação com a covid-19 se tornou mais e mais presente, a procura do público por Contágio também aumentou.| Foto: Divulgação

O cinema ainda estava em sua infância quando, em 1902, Georges Méliès lançou Viagem à Lua, usando o romance Da Terra à Lua, de Júlio Verne, como inspiração. Demoraria mais de meio século até que, em 1969, o homem de fato chegasse à lua a bordo da Apollo 11. A realidade tem um jeito de alcançar a ficção, mesmo a mais derivativa e surreal delas.

No caso de um filme como Contágio, dirigido por Steven Soderbergh, não era uma questão de possibilidade. Era, assim como a ocorrência de uma pandemia como a do novo coronavírus, uma simples questão de tempo. Bem pouco tempo.

Scott Z. Burns, roteirista do filme, queria trabalhar mais uma vez com Soderbergh depois de terem feito juntos O Desinformante!, em 2009. A ideia era, justamente, um filme-desastre realista. Ou seja, sem aliens ou monstros. Para isso o escritor pesquisou diversas patologias ao longo de três anos, contando com a consultoria do Dr. Ian Lipkin, então professor de epidemiologia na Universidade de Columbia, na Escola Mailman de Saúde Pública. Assim nasceu o ficcional MEV-1, vírus altamente contagioso e mortal.

À medida em que a preocupação com a covid-19 se tornou mais e mais presente, a procura do público por Contágio também aumentou. Enquanto escrevo este texto, ele é o quarto filme mais comentado no Letterboxd, rede social dedicada à cinefilia, ao lado dos vencedores do Oscar e lançamentos da semana.

Não é para menos. A combinação de um elenco estelar – Matt Damon, Gwyneth Paltrow, Kate Winslet, Lawrence Fishburn, Marion Cotillard, Bryan Cranston, Eliott Gould e Jude Law, para ficar apenas nos principais – com precisão científica e narrativa panorâmica resulta em uma grande experiência cinematográfica. Além disso está o fato de a história ser presciente. Se em 2011, quando foi lançado, Contágio era lido como um exagero sobre casos como SARS e H1N1, hoje parece apenas adequado.

Ao rever Contágio neste início de 2020, com a perspectiva de isolamento e distanciamento social para evitar contaminação, o tom geral do filme vai se tornando cada vez menos ficcional. Curiosamente, o que parece ter envelhecido é a existência de uma estrutura governamental que ouve cientistas e toma atitudes de forma a atender a população.

Há apenas duas cenas em que uma burocrata conversa com a personagem de Winslet, uma doutora que vai até o epicentro da crise para primeiro traçar a rota de contaminação e, depois, montar infraestrutura necessária para tratar os pacientes. A funcionária do governo comenta como isso pode afetar a economia, já que é o feriado de Ação de Graças (o que aumenta a contaminação) e, em uma cena posterior, questiona de onde sairá o orçamento para as ações emergenciais. Winslet, preocupada com questões mais urgentes, suspira.

Até mesmo a rota do MEV-1 é curiosamente semelhante à do coronavírus. Na cena final de Contágio descobrimos que a epidemia foi deflagrada pelo desmatamento em uma floresta chinesa, o que leva morcegos a conviverem com porcos que serão levados para consumo humano – em uma entrevista na época do lançamento do filme o Dr. Lipkin explicou que vírus tendem a passar de morcegos e porcos para humanos por serem animais de temperatura corporal semelhante. O vírus se torna uma combinação de DNA de dois tipos diferentes que infectam estes animais. Não há anticorpos, não há escapatória.

Catástrofe cinematográfica

A primeira imagem de Contágio é uma tela preta. Ao fundo, ouvimos tosse. É a personagem de Paltrow, a paciente zero. O letreiro dá o tom de alarme: “Dia 2”. São elementos de um suspense construído cinematograficamente. Não sabemos como começou, nem sequer com quem ela teve contato até aquele momento. Parte da trama se desdobrará nesse sentido, com a doutora vivida por Cotillard buscando traçar os passos do vírus. A esperteza de Soderbergh está em fazer uma narrativa panorâmica, acompanhando vários desdobramentos ao mesmo tempo – mais ou menos como ele já havia feito em Traffic, em 2000.

Ele é um diretor sempre atento aos detalhes (ajuda o fato de ele, em geral, trabalhar comoo diretor de fotografia e editor dos próprios filmes) cuja estratégia está em fazer a câmera acompanhar as mãos dos personagens, que recebem tossidas contaminadas e, em seguida, tocam objetos que logo serão manuseados por outras pessoas. A imagem demonstra a conexão virulenta entre as vidas, sem fazer distinção de classe social ou respeitar barreiras internacionais – a doença como o grande balizador humano. É como se o enquadramento soubesse algo que os personagens não se dão conta: de que o vírus está lá, ainda que seja impossível percebê-lo – o cinema como o grande equalizador cultural.

Origem chinesa, relativamente desconhecida, potencializada pelos hábitos duvidosos de higiene de uma população que convive em um mundo que vai se tornando progressivamente menor, com mais viagens internacionais e menos barreiras comerciais. As semelhanças entre MEV-1 e COVID-19 impressionam pela precisão científica, mas Soderbergh e Burns vão além.

Contágio é um filme que se preocupa com o suspense científico, demonstrado, pelo esforço de pesquisadores que, por meio de uma rede mundial, aos poucos desvendam o quebra-cabeças genético para desenvolver uma vacina, mas também com o melodrama, ao acompanhar o um pai de família que, por sorte, é imune, tentando proteger a filha, que é quem lhe resta na família – a reação de Damon quando é informado da morte da esposa talvez seja o ponto alto de sua carreira.

A parte mais assustadora, porém, está em como a sociedade rapidamente abandona qualquer resquício de civilidade. A crise de abastecimento se instaura em poucos meses. As primeiras a serem saqueadas são as lojas. Em seguida as casas. Pessoas morrem e não é em decorrência direta do vírus. Contágio, novamente, é um exemplo extremo e o MEV-1 é um vírus irreal de tão agressivo, mas os exemplos contemporâneos demonstram como a ficção consegue ser precisa ao imaginar o pior cenário possível.

E então há Alan Krumwiede, o blogueiro vivido por Law, que recebe de Gould a melhor frase do filme como resposta: “blogs não são jornalismo, são pichação com pontuação”. Eram outros tempos em 2011. Krumwiede é o primeiro a prestar atenção em um vídeo que mostra um dos primeiros contaminados. Isso estabelece a base para sua imagem pública como autoridade no assunto. Ele logo começa a vender uma cura milagrosa, sem nenhuma base científica, apelando para a paranoia de uma população já propensa a acreditar que qualquer doença foi criada pela indústria farmacêutica para enriquecer (quando, evidentemente, ele é quem enriquece com o processo).

A indústria da desinformação é a mais eficiente em tempos incertos, como qualquer um que tenha recebido a mensagem de que gargarejo com água, sal e vinagre matam o coronavírus podem atestar.

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