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Coetzee e Malan

Dois livros decifram o “genocídio branco” da África do Sul criticado por Trump

O escritor John Maxwell Coetzee recebe título de doutor honoris causa na Universidade de Murcia
O escritor John Maxwell Coetzee recebe o título de doutor honoris causa na Universidade de Murcia, Espanha (Foto: EFE/Marcial Guillén)

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“No fim, todos os homens traem a sua tribo.” (Rian Malan, Coração Traidor) 

“O que aconteceu com você foi uma atrocidade. Foi um crime. Quero que aqueles homens sejam presos. Quero que sejam punidos.” (J. M. Coetzee, Desonra) 

“A violência só será vencida se o ser humano reconhecer sua própria participação nela. Mas ele prefere apontar para o outro como culpado.” (René Girard, A Violência e o Sagrado) 

Quando, em 21 de maio, Donald Trump recebeu Cyril Ramaphosa na Casa Branca, eu já intuí o que estava por vir. Um dos temas da conversa entre os mandatários haveria de ser a recalcitrante violência racial na África do Sul – pensei. E durante o encontro, de fato, tal como amplamente divulgado pela imprensa, o americano confrontou o sul-africano sobre o que chamou de “genocídio branco” no país, com referência à onda de violência perpetrada por negros contra boeres, fazendeiros brancos descendentes dos colonizadores holandeses. 

Na ocasião, Trump exibiu ao visitante um vídeo com discursos e entrevistas de Julius Malema, nos quais o líder do partido de extrema-esquerda EFF (Economic Freedom Fighters) dizia coisas como “A revolução exige que em algum momento haja mortes!”. E mostrou também cenas de um comício em que o ex-presidente Jacob Zuma (2009–2018), outrora copartidário de Ramaphosa, entoava uma canção com os versos: “Você é um boer. Nós vamos atirar e vocês vão fugir. Atire no boer!”. 

Ao ver a notícia, e pensar no cenário sul-africano contemporâneo, lembrei-me imediatamente de dois livros sobre a África do Sul que me marcaram profundamente, e que me foram apresentados há quase 20 anos pelo meu então professor (e até hoje amigo) Peter Fry, grande especialista em antropologia, história e relações raciais no continente africano. O primeiro deles, Desonra (Disgrace), é mais conhecido no Brasil, pois rendeu um Nobel de literatura ao autor, o escritor sul-africano J. M. Coetzee, tendo saído pela Companhia das Letras. O segundo, menos conhecido, é Coração Traidor (My Traitor’s Heart), do jornalista e compositor sul-africano Rian Malan. Embora minha primeira leitura dessas obras tenha sido há mais de duas décadas, a passagem do tempo só fez, para mim, reafirmar a pertinência das interpretações dos autores, ambas convergentes, conquanto uma tenha sido expressa sob forma de romance, e a outra, de memórias. 

O destino está no sobrenome

Eviscerando o colapso moral do apartheid, Coração Traidor consiste no testemunho lancinante de um homem ferido por sua própria genealogia. Rian Malan, neto tardio de uma linhagem boer que ajudou a erguer os alicerces do regime de segregação racial, volta os olhos para a África do Sul não apenas como repórter, mas como penitente – alguém cuja escrita busca, mais do que esclarecer, expiar. Combinando jornalismo literário, confissão autobiográfica e reflexão político-cultural – numa escrita que lembra a do new journalism de Tom Wolfe e Truman Capote –, sua narrativa não obedece à lógica linear da história oficial. É feita de fragmentos, de memórias desordenadas, crimes hediondos, silêncios ancestrais e lampejos de lucidez, que orbitam um mesmo eixo temático: a culpa de ter nascido branco no “continente negro”. E, para piorar, de uma família boer. 

Não se trata, contudo, da culpa histriônica e performática do progressista moderno – aquela que se reveste de virtudes de ocasião e vive a pedir perdão com os olhos postos nas câmeras. A culpa de Malan é atávica, quase biológica. E, por isso, real. Não é uma estratégia retórica, mas uma autêntica neurose moral. Ao contrário dos panfletários de consciência tranquila, Malan não busca aplacar sua má consciência com fórmulas ideológicas ou ostentação de virtude. Seu exílio juvenil nos Estados Unidos, seus flertes com a contracultura ocidental, sua recusa ao serviço militar – nada disso lhe serve como indulgência. Ao retornar à África do Sul, defronta-se não apenas com a terra de seus antepassados, mas com um presente saturado de violência racial, onde os papéis de vítima e algoz se embaralham no noticiário. Malan percorre o país em busca de sentido, e encontra apenas um caos ritualizado, em que a violência deixou de ser exceção para se tornar uma regra tácita de convivência. 

Eminentemente pessoal, e corajosamente iconoclasta, seu texto escapa aos clichês das ideologias identitárias contemporâneas. Escrito por um africâner cuja juventude se passou no front do combate ao apartheid, e cujo ídolo foi mais Bob Dylan do que Paul Kruger, o livro revela o abismo que se abre quando o etéreo idealismo juvenil colide com o muro maciço da realidade. A estrutura não linear da obra – por vezes, quase esquizofrênica – é uma forma de espelhar essa impressão.  

Malan alterna reminiscências íntimas, reportagens sobre terríveis crimes com motivação racial e reflexões sobre o que chama de “a loucura sul-africana”, como se tentasse montar um quebra-cabeça cuja imagem final ele mesmo desconhece. À medida que volta do exílio americano e percorre seu país como um estrangeiro na própria terra, vê-se dilacerado entre o sangue dos seus e a compaixão pelos outros. É um traidor, sim – mas de quem? Da pátria dos antepassados ou da causa antiapartheid? Da raça ou da razão? 

Eis o dilema apresentado por Malan: é possível ser inocente quando se nasce do lado errado da história? A resposta, nunca dada diretamente, transparece no tom inquieto da obra. O autor parece concluir que não. Que há, no simples fato de ter herdado uma pele branca em solo africano, uma mancha que não se remove nem com as melhores intenções. Que ser bom não basta. Que a história não perdoa a aparência. Na África do Sul, mais do que em qualquer outra parte, Est omen in nomen – “O destino está no nome”. Ou, antes, no sobrenome. 

Nesse universo, a violência não é apenas uma ocorrência. É uma atmosfera. Um miasma. Os crimes descritos por Malan, tão atrozes que desafiam a sanidade, não são apenas registros factuais. São sintomas. Sintomas de um mal mais antigo, de uma doença espiritual que atravessa séculos e civilizações. Trata-se da África – não a dos panfletos publicitários ou dos discursos de cúpula da ONU, mas da África arquetípica, conradiana, noturna. Uma terra onde a brutalidade é tão natural quanto a luz do meio-dia. E onde o ódio, acumulado em gerações, se transfigura em rituais sangrentos de expiação. 

Mas nunca é demais repetir: Malan não embarca na retórica fácil do vitimismo redentor ou do esquematismo marxista-racial que tudo reduz ao binômio opressor-oprimido. Sua crítica recai tanto sobre os herdeiros do apartheid quanto sobre seus adversários mais exaltados. Destaca-se no livro, a propósito, a desmistificação do casal Nelson e Winnie Mandela, cuja violência político-racial raramente é mencionada nos livros de história. A “loucura sul-africana” é plural, transversal, ecumênica: há crimes de negros contra brancos, de brancos contra negros, de negros contra negros e de brancos contra brancos. Uma coreografia sinistra cuja lógica remete menos ao campo sociológico e mais ao terreno arcaico do sacrifício e da culpa coletiva. O mal, aqui, já não é apenas sistema – é quase sina. 

Entre os relatos mais perturbadores está o caso de Neil e Creina Alcock, descrito na última parte do livro. Brancos de espírito puro e vocação rural, os Alcock decidiram viver entre os miseráveis zulus de Msinga, região devastada pela pobreza e pela barbárie tribal. Ali, eles fundaram uma ONG, ensinaram técnicas agrícolas, partilharam o pão e o sofrimento com os esquecidos. Mas mesmo essa virtude radical não os salvou da África profunda: Neil termina brutalmente assassinado pelos mesmos zulus aos quais dedicou a vida. Sua morte é a epifania do fracasso moral de toda uma geração de bem-intencionados. É a alegoria que prova a insuficiência do mero desejo de reconciliação. Malan narra o episódio com a dor de quem assiste ao colapso de uma esperança. A mensagem é implacável: mesmo os justos podem ser imolados quando a linguagem da raça eclipsa a da humanidade comum. 

“Neil vivia como se o apartheid não existisse. O problema é que ele existia”, resume o autor. Reside aí uma dura verdade da obra: o humanismo universalista não sobrevive ao tribalismo concreto. A boa vontade individual é impotente diante de uma realidade em que a raça precede o homem, o fenótipo sobrepuja o caráter e o amor ao próximo aparenta ser mais uma forma de ingenuidade fatal. Esse é, aliás, o traço mais inquietante de Coração Traidor: sua recusa a consolar. Malan não oferece redenção nem para si, nem para seus leitores. Ao contrário: reencena, com brutal honestidade, o drama de um país incapaz de romper com a lógica sacrificial. Um país onde a paz ainda depende da escolha periódica de um bode expiatório – papel hoje ocupado pelos fazendeiros brancos. 

Ao final da obra, o leitor é deixado com um gosto amargo, pois tudo o que lhe resta é a contemplação do fracasso. Da impotência. Da condição trágica de quem, mesmo querendo o bem, não consegue evitar o mal. O “coração traidor” de Malan é o órgão de uma alma dividida entre a herança e a consciência, entre o sangue e o espírito. Portanto, seu livro não é uma denúncia. Nem é, por outra, um manifesto. É – isso sim – uma elegia. Um réquiem por um país que já nasceu partido e que, a julgar pela situação contemporânea dos boeres, talvez jamais possa ser inteiro. 

A utopia da coexistência racial

É precisamente aí que o livro de Malan conflui com Desonra, de J. M. Coetzee, cuja temática também gira em torno da culpa branca (dessa vez no contexto do pós-apartheid), da má consciência liberal-progressista e da descrença na possibilidade de uma integração racial genuína. O protagonista agora é David Lurie, um professor universitário branco que, após ser acusado de assédio sexual ao se envolver com uma aluna negra, se exila na fazenda de sua filha Lucy, no interior da África do Sul. Ali, pai e filha são vítimas de um ataque brutal, num episódio que ecoa, com variações, a tragédia vivida por Neil e Creina Alcock. 

Estuprada coletivamente por três jovens negros, e engravidada em consequência do ato terrível, Lucy escolhe o silêncio – não como negação da dor, mas como uma estranha forma de suportá-la. Ela recusa-se a denunciar os agressores. Recusa-se, inclusive, a sair dali – refém que é, como Neil, da utopia da coexistência racial. Sua permanência na terra soa como um pacto não verbalizado com a nova ordem pós-apartheid: ela aceita tornar-se uma mulher branca sob tutela, subordinada ao domínio tácito de Petrus, o antigo empregado que agora ascende como senhor de fato. Petrus, por sua vez, adota a linguagem do poder que já aprendeu com os brancos: nada diz, nada acusa, nada corrige – apenas absorve. Mantém relações cordiais com os estupradores de Lucy, um deles seu enteado, como se a barbárie fosse apenas um episódio incômodo da transição histórica. 

Também Lucy parece querer normalizar a violência sofrida, como se fora um tributo moral que devesse pagar para continuar vivendo na África negra. Para a incompreensão desesperada de David, ela insiste em ficar. E permanece ali, resignada, um tanto quanto apática, incapaz de se comunicar e de estabelecer laços emocionais com o pai. Seu destino parece ser o de expiar a culpa branca pela opressão racial imposta aos negros no passado. Lucy demonstra querer aceitar esse destino violentando a si própria. Ela também parece tomada pela “loucura sul-africana”.  

Mas Lucy ainda encontra um lugar nessa loucura. Mal ou bem (mais mal do que bem, decerto), ela se adaptou ao inóspito ambiente. Muito diversa é a situação de David, um intelectual urbanoide, niilista e misantropo, perdido num espaço geograficamente próximo, mas culturalmente tão distante, uma região na qual “é um risco possuir coisas: um carro, um par de sapatos, um maço de cigarros”. Assim como o autor de Coração Traidor, o protagonista de Desonra sente-se perpetuamente inadequado. David Lurie não tem um lugar para si. Na inspirada descrição de Coetzee: 

“Ele fala italiano, fala francês, mas italiano e francês de nada lhe valem na África negra. Está desamparado, um alvo fácil, um personagem de cartoon, um missionário de batina e capacete esperando de mãos juntas e olhos virados para o céu enquanto os selvagens combinam lá na língua deles como jogá-lo dentro do caldeirão de água fervendo. O trabalho missionário: que herança deixou esse imenso empreendimento enaltecedor? Nada visível”. 

Malan e Coetzee têm o ceticismo em comum. Não se deixam seduzir por narrativas de inocência fácil ou reconciliação sem custos. Ambos retratam a realidade sul-africana como um campo minado de ressentimento, trauma histórico e desconfiança mútua. Ambos rejeitam a visão idealizada de reconciliação racial como simples projeto político ou sentimental. A má consciência branca não é suficiente para construir uma nova África do Sul. Pelo contrário, quando não se faz acompanhar de uma real compreensão das dinâmicas locais, o sentimento de culpa resulta frequentemente em alienação, humilhação ou até morte. Em Malan, o sacrifício de Neil Alcock parece ser uma tentativa de redenção pessoal, que culmina em tragédia. Em Coetzee, a submissão de Lucy simboliza uma postura estoica, quase sacrificial, em nome da permanência histórica – mas à custa da própria autonomia e dignidade pessoal. 

A sacralização da revanche

Finalmente, a África de Rian Malan e J. M. Coetzee pode ser interpretada à luz de um terceiro autor: René Girard. Trata-se, como já ficou implícito, de uma sociedade sacrificial, eternamente presa no ciclo do bode expiatório. Uma sociedade mergulhada em ressentimento cruzado: negros ressentidos pela opressão e humilhação do apartheid; brancos ressentidos pelo medo da vingança, pela decadência de sua ordem e pelo colapso da identidade boer. Ambos os lados vivem sob tensão mimética, desejando o que o outro tem ou teve: terras, dignidade, reconhecimento, pertencimento. Ambos mimetizam os respectivos ódios. Daí – particularmente no livro de Malan – o florescimento incessante de figuras expiatórias: o branco progressista acusado de deslealdade; o policial negro visto como traidor e capitão-do-mato; o jovem boer brutalizado por vingança; o colaborador do CNA (Congresso Nacional Africano) linchado por suposta traição. Como talvez argumentaria Girard, todas essas vítimas são ambíguas, liminares, e sua destruição catártica funciona como válvula de escape para tensões inconfessáveis. 

Parafraseando o título do livro de estreia de Girard – Mentira Romântica, Verdade Romanesca –, dir-se-ia que as obras de Malan e Coetzee ilustram a verdade girardiana contra a mentira identitária, que tende a organizar o mundo no binarismo fixo entre vítimas e opressores. Na lógica identitária, de fato, entrevemos a estrutura sacrificial girardiana, apenas que invertida: em vez de oprimidos sacrificados pelos poderosos, vemos os poderosos (ou tidos como tais) sacrificados simbolicamente pelos que se declaram vítimas históricas. Assim, os brancos, os homens, os heterossexuais, os cisgêneros, os cristãos, os ocidentais, os israelenses etc. passam a ser alvos de uma pretensa justiça histórica, não raro manifesta como humilhação (ou auto-humilhação) pública, cancelamento, exclusão e difamação, atos de violência justificados por uma retórica vingativa. 

Longe de promover reconciliação, esse modelo repete a lógica antiga, em que a violência e a exclusão de um bode expiatório prometem restaurar a ordem. Na versão identitária contemporânea, essa exclusão é ainda moralizada, sob a forma de “reparação histórica”. Trata-se de uma sacralização da revanche, o que Girard talvez chamasse de mecanismo sacrificial não revelado. Esse mecanismo se funda sobre a ilusão de que o bem está exclusivamente de um lado, sendo o outro apenas um obstáculo a ser removido. Essa lógica justifica perseguições simbólicas ou reais, em nome de uma “pureza” mistificada, que jamais existiu. Como que girardianamente inspirados, Malan e Coetzee a denunciam, demonstrando que todos, inclusive os justos e as vítimas reais de outrora, podem se tornar carrascos quando capturados pelo ciclo infernal da violência sacralizada. 

Girard afirma que a única saída do modelo sacrificial é o reconhecimento da inocência da vítima – como Cristo revelou na cruz. Esse ato obriga a humanidade a reconhecer que o bode expiatório não é culpado, que a violência não redime e que a reconciliação exige verdade e perdão, não vingança. Em Malan, embora não se observe a presença de uma teologia explícita, há um desejo profundo de reconciliação não-sacrificial, fundada não no esquecimento, nem na troca de velhos por novos opressores, mas na dolorosa aceitação da humanidade comum – trágica e falível – de todos os envolvidos. 

Coração Traidor manifesta um girardianismo sem Girard, ao revelar o ciclo da violência mimética, o desejo rivalitário, a fabricação de culpados, o colapso das narrativas redentoras e o custo moral da paz verdadeira. Dessa perspectiva, o cristianismo ofereceria à África do Sul a saída que as religiões pagãs e políticas jamais puderam prover, a de uma reconciliação que não precisa matar, nem humilhar, nem sacrificar ninguém. Uma ordem fundada não no medo do outro, mas no reconhecimento de que todos – negros, brancos, boeres, zulus, xhosas, sothos ingleses etc. – são filhos de Adão, igualmente caídos, mas igualmente redimíveis. 

Esse girardianismo acidental também está presente em Desonra, livro em que o protagonista, David Lurie, se torna um bode expiatório – primeiro no ambiente universitário, e em seguida no interior da nova África do Sul pós-apartheid. Por um lado, a figura do acadêmico representa a culpa coletiva do homem branco culto, herdeiro do apartheid, do patriarcado e da arrogância iluminista, particularmente ridícula no “coração das trevas” sul-africano. Por outro, representa também a resistência trágica de quem não quer participar da nova ordem, sequer mesmo simbolicamente, mas cuja misantropia é desafiada por um contexto em que, totalmente inapto para a realidade rural e tribal sul-africana, o sujeito passa a depender dos outros, tal qual um bebê depende dos adultos para subsistir. 

Segundo o esquema de Girard, as comunidades em crise mimética invariavelmente apontam um culpado simbólico para expulsar e restaurar a ordem. David é precisamente esse sujeito. O motivo não é sua excentricidade, mas o fato de encarnar um arquétipo a ser purgado. A universidade – o novo templo do “politicamente correto” – decide então sacrificá-lo, não por desejo de justiça, mas por necessidade de apaziguamento. 

Por sua vez, a fazenda de Lucy também pode ser vista como um templo – já não moderno, mas arcaico. Considerando que Girard distingue entre dois tipos de “sagrado” – o sagrado pagão (violento e sacrificial, baseado na exclusão e no sangue) e o sagrado cristão (que denuncia e subverte esse mecanismo ao revelar a inocência da vítima) –, temos que a fazenda é um lugar de retorno da violência exuberante e ostensiva, distinta da violência politicamente correta, que se traveste de uma moralidade nova e pretensamente superior. Quando ali se refugia, o romântico professor David (sintomaticamente, especialista em Lord Byron) espera encontrar uma forma de vida natural, pastoral e, de algum modo, redentora. O que encontra, todavia, é outro teatro de violência sacrificial, dessa vez racializado. 

O ataque dos três jovens negros à fazenda – que inclui o estupro coletivo de Lucy, o assassinato de animais (outro tema girardiano: o sacrifício ritual de inocentes) e o silêncio cúmplice de Petrus – constitui um novo rito tribal e pagão, onde o homem branco e sua filha são simbolicamente imolados. A cena remete-nos ao arquétipo do rei sacrificado, tal como descrito por James Frazer em O Ramo Dourado, um clássico da antropologia. No livro, Frazer menciona antigos ritos pagãos nos quais o rei, símbolo de ordem e fertilidade, era ritualmente morto para garantir a renovação do ciclo vital da comunidade. Em Coetzee, o destino de David e Lucy revive esse mito em chave secular. Ambos, herdeiros simbólicos de uma soberania racial em ruínas, tornam-se oferendas silenciosas a uma nova ordem que exige, para se afirmar, a expiação de privilégios ancestrais. 

Ao aceitar calada a violência sofrida e submeter-se ao domínio tácito de Petrus, Lucy assume o papel da vítima propiciatória. Sua fecundidade forçada, resultante provável do estupro, adquire tons sinistramente litúrgicos – como se a semente do agressor fosse também a semente da reconciliação. Sua presença na terra, mesmo como subalterna, configura uma tentativa de restauração da harmonia, não pela justiça, mas pelo sacrifício. Já David, destituído de poder e até mesmo de linguagem, assume o papel do sacerdote derrotado que conduz o rei à morte, ou do cronista mudo de um ritual que não compreende, ou ainda do patriarca vencido na guerra, que vê as mulheres da tribo serem levadas como espólio pelo chefe tribal vitorioso.  

O escritor ganhador do Nobel de Literatura J. M. CoetzeeO autor sul-africano ganhador do Nobel de Literatura J. M. Coetzee (Foto: EFE/Marcial Guillén)

Na África do Sul descrita por Coetzee, ainda habita o imaginário arcaico do bode expiatório: não há justiça sem sangue, não há futuro sem uma oferenda que satisfaça o passado. Uma leitura girardiana de Desonra ajuda-nos a perceber que a violência ali não é apenas vingança individual, mas uma atroz tentativa de reequilibrar o cosmos social pós-apartheid. Lucy compreende-o perfeitamente. Daí sua submissão resignada à nova ordem, sua recusa em denunciar o estupro sofrido e seu casamento de conveniência com Petrus. Por livre e espontânea vontade, Lucy aceita tornar-se bode expiatório, e se oferece em sacrifício como um cordeiro.  

David, no entanto, resiste. Ainda entretém a ilusão de controlar, de se redimir sem nada ceder ao universo sacrificial da África profunda. De forma meio automática, ele passa a cooperar com uma colona vizinha com quem manteve relações sexuais, trabalhando com ela num abrigo de animais abandonados ou moribundos. Nesse local, a principal missão de David passa a ser a de auxiliar no sacrifício dos cães desenganados e no descarte dos corpos. É um trabalho miserável, que, no início, David executa sem perder sua visão cínica e niilista de mundo. Mas, sem saber muito bem como, aos poucos ele passa a se compadecer dos pobres animais, e a sofrer por eles.  

Um episódio no abrigo de animais dá a pista dessa discreta mudança interior. Num dado momento, David presencia o sofrimento de um bode ferido, prestes a ser sacrificado. Mesmo sem conseguir evitar o destino do animal, ele tenta ampará-lo: 

“Ele ajuda o homem dos cães a carregar o bode até a sala de abate. Lá, eles o deitam, cobrem seus olhos com um pano e o seguram enquanto a agulha encontra a veia. Ele acaricia a testa do bode, sente o hálito quente, tenta confortá-lo”. 

Esse gesto – tocar, consolar, estar presente na hora da morte – marca a mudança de postura de David. Antes altivo, egocêntrico e emocionalmente indiferente, ele agora se submete ao sofrimento do outro, sem buscar justificativas estéticas, políticas ou filosóficas. Não está mais em condições de “gerir” ou “explicar” a dor. Em vez disso, compartilha-a, ainda que de modo impotente. Embora não consiga salvar o animal, David está presente como testemunha e consolador, o que faz com que seu próprio fracasso seja humanizado. Na biografia do intelectual niilista, trata-se de um raro momento de compaixão desinteressada. 

O episódio também ilustra um rompimento, ainda que fugaz, com o ciclo sacrificial tradicional. David não busca mais um bode expiatório no qual descarregar o ódio ou aliviar a culpa; ao contrário, ele se identifica com o bode real, o inocente que sofre. Se Lucy era o cordeiro, David é o bode – o velho bode agonizante. 

Na África profunda, os dias de David não são heroicos, mas degradantes. Ao final, contudo, quando carrega os cadáveres animais nos braços até o forno crematório, é como se o sagrado cristão retornasse pelas frestas do paganismo e do niilismo, oferecendo-nos uma imagem que não seria absurdo qualificar de pascal, por evocar a de Cristo, Servo Sofredor: o homem expulso carregando a criatura inocente até a morte. Pela primeira vez, David abandona o narcisismo e age sem desejo mimético, sem esperar recompensa. Pela primeira vez desde a brutal violência sofrida, David renuncia ao sagrado violento e esquece sonhos de vingança. 

Mas, a despeito dessa nesga de esperança, o romance de Coetzee não oferece catarse. Ao contrário, o que faz é revelar o colapso da comunicação racional, da justiça e de toda identidade estável. Nada no ambiente é purificado. Ninguém é redimido por completo. O que resta é o gesto minimalista de compaixão. Daí que a “graça” (grace) do título nunca se realize plenamente. Há apenas “disgrace” – desonra. Trata-se de uma Paixão laica, o Evangelho canhestro de um mundo onde a crucificação continua, mas a Ressurreição tarda – porque a humanidade resiste à revelação cristã, resiste a abandonar o desejo mimético, a lógica do bode expiatório e o gozo da vingança. 

David assiste a tudo com a impotência de alguém cuja linguagem articulada converteu-se em balido; alguém que, tendo perdido quase tudo o que tinha de material, perdeu também a honra, o orgulho e a autoridade paterna; alguém que passou da condição de professor autoconfiante a aluno indefeso. Incapaz de compreender a escolha da filha, bem como de se comunicar a contento no novo ambiente, seu desespero não é apenas moral, mas civilizacional. O mundo que conhecia – feito de justiça formal, direitos individuais e mediações institucionais – desmoronou. Resta-lhe o silêncio dos cães, os cadáveres que carrega até o forno crematório, como se ali, nesse luto sem metafísica, pudesse reencontrar alguma forma não-doutrinária de compaixão. Eis que, em seus últimos gestos – cuidando dos animais, aceitando a vergonha, calando-se –, David inicia uma conversão, conquanto o mundo lá fora pareça muito longe dela. 

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