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Um Completo Desconhecido

Para entender a profundidade de Bob Dylan, é preciso ouvir “Blood on the Tracks”

Capa do álbum que Bob Dylan lançou há 50 anos: "Blood on the Tracks"
Capa do disco que Bob Dylan lançou há 50 anos: "Blood on the Tracks" (Foto: Reprodução LP)

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Enfim chegou ao streaming (mais precisamente, ao Disney+) o filme indicado ao Oscar Um Completo Desconhecido, de James Mangold, com Timothee Chalamet no papel de Bob Dylan. A história é baseada no livro Dylan Goes Electric, de Elijah Wald, tornando-se uma cinebiografia do início da carreira do compositor nos anos 1960, retratando a conquista do sucesso como cantor folk até sua migração para o rock, que foi motivo de escândalo e não pouca confusão.

O filme mostra a ambição silenciosa de Dylan, sua relação distante com as pessoas, inclusive as próximas, compondo alguém enigmático. A escolha de Chalamet para interpretá-lo foi feliz, não apenas por possuir, por natureza, o mesmo olhar blasé de Dylan. Mas por ser bom em representar conflitos interiores sem falar, usando expressões faciais e corporais. Chalamet fez um bom trabalho, sem exagerar na dose.

Entretanto, a narrativa linear e uma direção muito convencional acabaram por esvaziar o personagem, tornando o filme tecnicamente competente, mas raso e anódino, apenas arranhando a complexidade do protagonista e sua natureza disruptiva. Se comparado a Não Estou Lá (2007), de Todd Haynes, então, o Dylan de Um Completo Desconhecido acaba não sendo mais do que uma “rolling stone”, não no sentido roqueiro da expressão, mas no sentido literal: uma “pedra rolante”.

A história começa com ele chegando em Nova Iorque, sem sabermos de onde vem ou qual o seu passado, e termina da mesma forma, com ele seguindo adiante sem sabermos para onde vai, nem muito mais sobre quem seria de verdade. Aliás, Sylvie, uma de suas namoradas no filme, diz a certa altura que ele sabia tudo sobre ela, mas que ele nunca contava nada sobre si.

Sara ignorada

Joan Baez, com quem Dylan também se envolveu naquele período (é das melhores coisas no filme a relação conturbada deles pela competição musical entre ambos), afirmou que Dylan queria ser, mais do que tudo, livre de qualquer amarra – daí porque não se entregava de fato nos relacionamentos amorosos. Restou, no fim das contas, o mesmo enigma do início: quem é Bob Dylan?

A escolha do título não deixa de ser a resposta. Trata-se de um verso da famosa Like a Rolling Stone, música composta por Dylan depois dos eventos retratados no filme, na qual associa ser “como uma pedra rolante” com ser “um completo desconhecido”, depois de perguntar: “Como é a sensação? De estar por conta própria, sem direção para casa?”

Monica Barbaro e Timothée Chalamet interpretam Joan Baez e Bob Dylan no filmeMonica Barbaro e Timothée Chalamet interpretam Joan Baez e Bob Dylan na cinebiografia (Foto: Divulgação Searchlight)

É pena que, no filme, esta sensação seja simplificada demais. As próprias letras das músicas tocadas contrastam, por sua profundidade, com a superficialidade da história contada. Essa simplificação fica ainda mais evidente quando se conhece mais da biografia de Dylan, descobrindo que o filme optou por não retratar um terceiro caso amoroso que Dylan teve naquele período e que foi o mais relevante, pois foi com esta mulher, Sara, que se casou e passou os 12 anos seguintes.

Ou seja, se fosse tão “livre de amarras”, pouco abrisse sua intimidade e estivesse tão por conta própria, sem direção para casa, certamente não teria se casado logo sem seguida, muito menos este casamento teria durado tanto, tendo tido quatro filhos e com Dylan ainda adotando a filha que Sara teve antes de conhecê-lo, fruto de um casamento anterior. Portanto, se Sara fosse incluída no filme, a história necessariamente mudaria, e consideravelmente.

Separação amorosa

Para se ter uma noção melhor da distância que o filme ficou da complexidade e profundidade de Dylan, vale a pena escutar o disco que compôs quando do fim do casamento com Sara, que muitos consideram a sua maior obra-prima. Trata-se de Blood on the Tracks, que completa 50 anos de lançamento em 2025.

Embora Dylan afirmasse que as músicas não eram sobre o fim do relacionamento, mas inspiradas em contos de Anton Tchekhov, Jakob, seu filho caçula e futuro cantor da banda The Wallflowers, não tem dúvidas: “Quando escuto Blood on the Tracks, é sobre meus pais”. O disco possui diversas camadas, porém, ainda que a dor da separação seja a mais evidente.

O próprio Dylan chegou a comentar que, embora estranhasse as pessoas gostarem tanto do disco, compreendia que a obra comovesse quem já tenha sofrido uma separação amorosa, passado por algo parecido. Neste sentido, a sensibilidade do álbum é de uma riqueza impressionante. Não há sentimento que se viva durante um rompimento de uma relação de tantos anos que não esteja presente e elaborado nas músicas. 

Nos versos finais de Simple Twist of Fate, a segunda faixa do disco, Dylan reflete sobre a intensidade emocional que carrega, dizendo que a profundidade de seus sentimentos era vista como “um pecado” pelos outros, ou seja, como algo perigoso ou inadequado. Na verdade, pecado seria se essa profundidade e intensidade não fossem expressadas em sua obra. É precisamente o que falta em Um Completo Desconhecido.

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