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Enquanto o mundo do cinema se prepara para deixar para trás os filmes leves das férias de verão no hemisfério Norte para dar boas-vindas para as obras mais sérias e artisticamente ambiciosas da temporada de festivais e prêmios, temos um momento oportuno para pensar no cânone: aquela lista de filmes reverenciados que ajudaram a formar ou desconstruir a linguagem cinematográfica. Filmes que não só capturaram o próprio zeitgeist mas que se provaram sabiamente proféticos e que passaram no teste da história para permanecerem como verdadeiras aulas de estética, técnica, gramática e gosto. 

No geral, o cânone é constituído por uma lista inalterada dos títulos mais reverenciados do cinema. A última vez que essa seleção sofreu alguma alteração drástica foi em 2012, quando a respeitada revista de cinema “Sight & Sound” anunciou uma lista feita por profissionais e acadêmicos com os melhores filmes de todos os tempos. A grande mudança da seleção foi a aparição do filme "Um Corpo que Cai", lançado em 1958 pelo diretor Alfred Hitchcock, no topo da lista, substituindo o tradicional primeiro colocado "Cidadão Kane". 

Dito isso, o resto da lista era e continua sendo amplamente previsível, e inquestionavelmente merecida, com títulos conhecidos, de "A Regra do Jogo", de Jean Renoir a "2001: Uma Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick. Listas de instituições tão grandes como o American Film Institute e o British Film Institute preferem adorar os clássicos, sendo que "Amor à Flor da Pele", de Wong Kar-wai, e "Cidade dos Sonhos", de David Lynch, são os únicos filmes lançados depois de 2000 que foram adicionados. 

Ao mesmo tempo que a tendência de escolher filmes mais antigos é compreensível – é só depois da passagem de um tempo considerável que entendemos quais obras possuem um valor artístico durável que transcende um momento cultural específico –, ela acaba excluindo filmes que, apesar de sua juventude, poderiam ocupar um lugar entre seus antepassados com muita segurança. Mesmo que um mercado baseado em um modelo de negócios hollywoodiano, que dobrou a quantidade de filmes baseados em revistas em quadrinhos, com muitos efeitos especiais e vários reaproveitamentos (refilmagens, sequências, adaptações e etc), o início do século 21 testemunhou o surgimento de visões e vozes de tirar o fôlego, tanto na narrativa clássica quanto nas subversões de forma e gênero. 

Esta lista ajuda na modesta proposta de, quando se trata do cânone, expandirmos nossas noções de permanência e conhecimento para incluir filmes que são dignos de apreciação – até mesmo de veneração – apesar de serem tão recentes. (Quanto a um ranqueamento, essa seleção não é numerada. Ela reflete apenas uma coleção solta e intuitiva, sem uma hierarquia restrita.) Ninguém é um profeta em sua própria cidade natal; mas às vezes precisamos lembrar que muitos dos filmes que estamos vendo agora são genuinamente atemporais. 

"Filhos da Esperança" (Children of Men - 2006) 

Adaptação de Alfonso Cuarón do romance de P.D. James, o filme evidenciou o equilíbrio perfeito de proezas técnicas, narrativa envolvente, desenvolvimento de caráter complexo e atualidade quando foi lançado em 2006. Mas sua representação de um futuro distante distópico – que agora infelizmente chamamos de presente – provou não ser apenas visionária mas também profética. Com seu valor preditivo à parte, ele se destaca como um filme sem falhas, uma obra-prima de valores cinematográficos em seu mais puro nível, com cada quadro transmitindo emoção e informações em medidas igualmente convincentes. 

"A Última Noite" (25th Hour - 2002) 

Lançado um pouco mais de um ano depois do 11 de setembro de 2001, o thriller urbano de Spike Lee sobre um criminoso (interpretado soberbamente por Ed Norton) confrontando seu passado ao embarcar em uma sentença de sete anos de prisão, foi o primeiro filme honesto lançado depois dos ataques. Lee usa uma cidade destruída como pano de fundo da história, evocando o neo-realismo pós-Segunda Guerra Mundial. Apesar do diretor nunca ter comentado sobre a tragédia diretamente no filme, ela se infunde no clima de resignação da obra (as ruínas do Marco Zero podem ser vislumbradas ao fundo, por exemplo). Lee demonstrou seu talento habitual para começos e finais, concebendo uma conclusão repleta de vida, esperança e a tristeza de um futuro reduzido a cinzas. 

"Guerra ao Terror" (The Hurt Locker - 2008) 

A diretora Kathryn Bigelow sempre se sentiu em casa em subculturas hipermasculinas e ritualisticamente agressivas. Nesse drama da Guerra do Iraque, ela mergulhou os espectadores no mundo dos técnicos que desmontam explosivos dentro e nos arredores de Bagdá, com uma técnica cinematográfica que era visceralmente subjetiva e formalmente reflexiva. Embora as sequências de batalha tenham sido coreografadas e executadas com maestria, uma das cenas mais memoráveis acontece no final do filme, quando um técnico arrogante retorna aos Estados Unidos e fica estupefato em um corredor de cereais no supermercado – o quadro transmite toda uma paisagem interior sem nenhum tipo de palavras ou ação discernível. 

"Conduta de Risco" (Michael Clayton - 2007) 

Se os filmes podem ser avaliados como somas de suas partes – roteiro, performance, design, edição e som – então esse thriller jurídico é pura perfeição. O roteirista Tony Gilroy, fazendo sua estréia na direção, subverte sabiamente o carisma natural do astro George Clooney, cuja interpretação de um homem que se desfaz entre assassinos de Manhattan é a melhor de sua carreira. É uma aula magistral de equilíbrio entre arte, tom e estrelato, feito com precisão, requinte e alma. 

"O Labirinto do Fauno" (Pan’s Labyrinth - 2006) 

Um artista excêntrico e intransigente que persegue sua obsessão individual sempre corre riscos: no pior dos casos, essas empreitadas acabam sendo sobrecarregadas, solipsistas e irremediavelmente opacas. Com esta fábula surrealista – a história de uma jovem audaz na Espanha Franquista que encontra segurança nos cantos mais assustadores de sua imaginação – Guillermo del Toro criou um filme que se qualificou não apenas como uma das peças visuais mais deslumbrantes do cinema mundial no início do século, mas também como uma alegoria política soberbamente eficaz do fascismo, da expressão individual e do poder de encontrar aliados em nossos monstros mais secretos. 

"Sangue Negro" (There Will Be Blood - 2007) 

Começando com uma sequência de abertura quase sem palavras na qual o explorador Daniel Plainview ameaça uma veia de minério em um poço no sudoeste americano, a adaptação de Paul Thomas Anderson do romance de Upton Sinclair "Oil!" anuncia logo sua ambição: ser a coisa mais próxima que temos do Grande Romance Americano em uma tela. Um retrato selvagem e desajeitado da ganância, da aspiração e da autoconfiança com um desempenho intransigente de Daniel Day-Lewis, esta crônica de empreendimento, exploração e capitalismo darwinista vibra com ousadia e emoção; até mesmo sua sequência final bizarra – polêmica por suas descaradas mudanças de tom e total estranheza – reafirma o fato de que os melhores filmes sempre têm um quê de loucos. 

"Boyhood" (2014) 

O conto de amadurecimento é um gênero confiável por causa de sua linearidade tranquilizadora e a ideia de reinventá-lo soa um pouco ridícula – é justamente por isso que Richard Linklater tentou fazê-lo. Filmando o mesmo garoto por 12 anos em cenas com Patricia Arquette e Ethan Hawke e trabalhando com a editora Sandra Adair para costurar as cenas, conseguiu alcançar uma combinação de momentos em uma representação fluente do tempo em seu modo mais inexorável, corrosivo e libertador. Não é sempre que se pode dizer que um cineasta inventou uma nova linguagem cinematográfica, mas foi o que Linklater fez com esse retrato terno e sincero. 

"Antiga Alegria" (Old Joy - 2006) 

Assim como Cristian Mungiu, o diretor americano Kelly Reichardt trabalha dentro de um vernáculo rigorosamente realista, um tipo de observação espontânea que exige um trabalho muito mais intenso do que a estética improvisada sugere. Se "4 meses, 3 semanas e 2 dias" foi corajoso e sombrio, esta crônica de uma viagem de fim de semana feita por dois velhos amigos no noroeste do Pacífico é lírica e exuberante. Os atores Will Oldham e Daniel London são envolvidos pelo clima generoso e verdejante da Cordilheira das Cascatas, tendo conexões emocionais se aprofundando em interlúdios longos e eloquentemente silenciosos. 

"Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças" (Eternal Sunshine of The Spotless Mind - 2004) 

Michel Gondry, trabalhando com o roteiro de Charlie Kaufman, retrata as tentativas desesperadas de um homem para apagar e depois recuperar um amor perdido em um thriller psicológico audaciosamente imaginativo e brilhantemente encenado. O filme começa como uma história de amor frustrada, mas acaba se tornando uma meditação profunda e comovente sobre memória, consciência e construção pessoal de significados. Como um castelo de cartas sempre em constante desenvolvimento, o filme consegue ser ao mesmo tempo racional e dolorosamente emocional, volúvel e meticulosamente calibrado. 

"Fome" (2008) 

O talentoso artista visual Steve McQueen ganharia um Oscar pelo drama de 2013 "12 Anos de Escravidão", mas suas indiscutíveis habilidades cinematográficas já foram anunciadas em sua estreia como diretor com o filme sobre o líder do Exército Republicano Irlandês, Bobby Sands. Estruturado como um tríptico na famosa prisão irlandesa Maze, o filme segue Sands – interpretado de forma fascinante por Michael Fassbender – em seus últimos dias, depois dele ter iniciado uma greve de fome para obter status político para os prisioneiros do IRA. Ancorado por uma rebuscada tomada de 17 minutos com Sands debatendo a moralidade de sua ação política com um padre católico, o filme é ao mesmo tempo íntimo e cuidadosamente formalista, perturbador e cheio de beleza improvável e passageira. 

"Conte Comigo" (You Can Count On Me - 2000) 

A estreia na direção e no roteiro do dramaturgo Kenneth Lonergan é uma obra-prima do subtexto. Em primeiro plano há a história de um irmão e uma irmã adultos chegando a um acordo com o passado, mas o filme está repleto também de impulsos subterrâneos de tristeza, abandono, lealdade e perdão. Filmado com uma franqueza que desarma, é magistralmente interpretado por Mark Ruffalo e Laura Linney. Esse drama humano, simples e muitas vezes divertido demonstra a arte de roteirizar em seus níveis mais avançados, honestos e emocionalmente ressonantes. 

"Onde os Fracos Não Têm Vez" (No Country for Old Men - 2007) 

Com esta adaptação do romance de Cormac McCarthy, Joel e Ethan Coen criaram um filme tecnicamente perfeito, uma verdadeira aula de sobre os elementos do estilo cinematográfico, desde escrita e atuação até edição e design de som. Os espectadores podem ser céticos em relação ao universo moral do filme – condicionado pelo pessimismo de McCarthy e pela retórica moral sobrecarregada – e ainda assim podem apreciar o controle impecável do material pelos Coen. Uma cena em que o protagonista, interpretado por Josh Brolin, ouve um inimigo se aproximando em um corredor do hotel é um tutorial sobre o uso do som para contar uma história com tensão e suspense excruciantes. 

"Não Estou Lá" (I’m Not There - 2007) 

Biografias cinematográficas são geralmente uma isca para Oscars e listas de internet. Mas Todd Haynes reinventou o gênero neste retrato complexo de Bob Dylan, em que o músico que era notoriamente mitologista e que constantemente se reinventou foi retratado por seis atores masculinos e femininos, dos quais apenas alguns tinham uma remota semelhança física com o personagem real. O fato de a aparência mais similar pertencer a Cate Blanchett (como o Dylan da época de "Don't look back") apenas reforçou a certeza de um empreendimento que subverteu a forma típica de seu gênero. 

"Minority Report" (2002) 

A adaptação de Steven Spielberg da história de Philip K. Dick é uma de suas melhores formulações sobre convenções de gênero estabelecidas – neste caso, um filme noir colocado a serviço da ficção científica especulativa. Lançando Tom Cruise em um papel de protagonista como um homem em desacordo com a cultura de vigilância de um futuro não muito distante, Spielberg construiu um mundo elegante e assustadoramente convincente de tecnologia consumista e controle corporativo que se mostrou incrivelmente profético. 

"Dunkirk" (2017) 

Desde sua estreia alternativa, o sucesso "Amnésia", Christopher Nolan tem brincado com noções de tempo, distorcendo a cronologia de seus filmes e criando narrativas densas em camadas que beiram a completa incompreensibilidade. Com esta história da evacuação das forças aliadas durante a Segunda Guerra Mundial, Nolan desconstrói o quadro temporal, acabando com a narrativa linear em favor de uma experiência sensorial imersiva e empática. Como exercício de som e imagem, "Dunkirk" alcançou uma pureza raramente vista no cinema comercial contemporâneo, sendo tradicional e inovador ao mesmo tempo. 

"Mudbound - Lágrimas Sobre o Mississippi" (2017) 

Em sua adaptação do romance de Hillary Jordan sobre a época da Segunda Guerra Mundial, Dee Rees fez um magnífico drama multigeracional que lembra "Os Melhores Anos de Nossa Vida" e a obra literária de William Faulkner. Colaborando com a cineasta Rachel Morrison e um elenco que incluía Carey Mulligan e Mary J. Blige, Rees abraçou os valores clássicos do cinema narrativo robusto e descompromissado, sacudindo a poeira no processo e provando que até mesmo filmes antiquados podem parecer urgentes, novos e genuinamente americanos. 

"Spotlight - Segredos Revelados" (2015) 

Outro exemplo de cinema clássico e simplificado, a dramatização de Tom McCarthy da investigação do Boston Globe sobre abuso sexual infantil dentro da Igreja Católica exala uma confiança tranquila. McCarthy usa uma narrativa direta e tem um controle equilibrado de tom para montar cenas sobre uma apuração jornalística que com atores e cineastas menos talentosos teriam sido fatais e tediosas. Este é um exemplo de alta qualidade da extração do drama na rotina cotidiana – e ele nunca dá um passo em falso. 

"O Filho de Saul" (Son of Saul - 2015) 

Mesmo em execuções bem intencionada e bem feitas, filmes que aspiram dramatizar o Holocausto causam náusea quase que por definição, já que o ato de testemunhar e preservar a memória quase sempre entra em desacordo com questões de estetizar o sadismo e o sofrimento ou de reduzi-los a um espetáculo. Laszlo Nemes, um cineasta de longa data da Hungria, conseguiu o impossível, recriando as atrocidades em Auschwitz a partir de suas margens, com um homem de semblanhistórite cauteloso navegando pelo campo enquanto tenta dar o enterro judaico adequado ao cadáver de uma criança. Filmado em uma proporção quadrada que acentua o aprisionamento do protagonista, Nemes convocou os espectadores a preencher as lacunas dos atos indescritíveis em torno deles, transformando o espectador em colaborador de sua imaginação moral. 

"Histórias Que Contamos" (Stories We Tell - 2012) 

Nesta autobiografia de sua infância, a atriz e diretora Sarah Polley usa ensaios em primeira pessoa, entrevistas, encenações e imagens de arquivo para criar uma sublime colagem visual e emocional na qual fato, ficção, memória e noções instáveis de verdade são mostradas em paralelo de uma maneira fascinante. Como parte de uma era de ouro dos filmes de não-ficção, essa exploração dos princípios centrais do gênero se qualifica como um enigma e uma demonstração valiosa de como equilibrar licença artística e transparência, cumprindo seu contrato implícito com o público com beleza, graça e tato. 

"Sob a Névoa da Guerra" (The Fog of War - 2003) 

Na década de 1990, Errol Morris revolucionou o cinema documentário com o uso da técnica de narrativa cinematográfica, incluindo encenações e estilização especulativa de cenas. Neste filme sobre o secretário de defesa da época da Guerra do Vietnã, Robert McNamara, Morris apresentou um ótimo exemplo de uma forma de não-ficção baseada em entrevistas. Usando o formato em um estilo básico e bruto e filmando McNamara em um close-up impiedoso, permite que seu assunto seja retratado de várias formas ao mesmo tempo: confiante, conflituoso, brilhante, arrogante e, finalmente, confuso. 

"Os Excêntricos Tenenbaums" (The Royal Tenenbaums - 2001) 

Wes Anderson alcançou a mais completa expressão de seu estilo característico nesta saga de uma família de Manhattan, que incorporou impecavelmente o humor inexpressivo e o estilo educado do cineasta, mas evitou o capricho ao qual ele frequentemente tende a sucumbir. A abordagem personalizada de Anderson para visuais e música pode muitas vezes parecer laboriosa e hermética. Mas essa história de tristeza e redenção transborda um sentimento genuíno que rompe a casa de bonecas e entra em um reino que é reconhecível e triunfantemente humano. 

"A Viagem de Chihiro" (Sen to Chihiro no kamikakushi - 2001) 

O diretor de anime japonês Hayao Miyazaki parece incapaz de fazer qualquer coisa além de obras-primas; ainda assim, este conto épico de uma jovem separada de seus pais e empurrada para um mundo mágico permanece como seu trabalho mais impressionante – não apenas por seu estética, mas também por seu senso de aventura, terror, resiliência e heroísmo. Cheio de uma imaginação cuidadosa, fantástica e infantil, elementos que podem parecer arrogantes ou impiedosamente substituíveis, a visão de Miyazaki também é terrena e profunda, mesmo em sua forma mais alegórica. 

Tradução por Gisele Eberspächer

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