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Em um cenário onde se discute no Congresso Nacional a obrigatoriedade de ao menos 20% do tempo de programação dos streamings ser de produções nacionais, a minissérie brasileira Pssica é uma grata surpresa. Parceria da Netflix com a O2 Filmes, estreou em 20 de agosto, rapidamente escalando para o Top 10 da plataforma em 68 países, obtendo milhares de visualizações sem que houvesse necessidade de qualquer auxílio estatal.
A produção é uma adaptação do romance homônimo do escritor paraense Edyr Augusto, com direção da dupla Fernando Meirelles (conhecido por obras como Cidade de Deus) e seu filho Quico Meirelles. Ambientada na vastidão misteriosa da Amazônia, tem por título uma gíria paraense, “pssica”, que é equivalente à “zica”, como é mais conhecido em outros estados brasileiro o que seria uma espécie de "maldição" ou "azar persistente", como se o destino conspirasse contra o indivíduo.
O romance de Augusto, publicado originalmente em 2015, não é baseado em fatos reais específicos, mas inspira-se em histórias verídicas de exploração humana na Amazônia, especialmente na Ilha de Marajó, como relatos de tráfico sexual de menores, prostituição forçada, corrupção e violência. A minissérie foi filmada majoritariamente em locações reais na Amazônia, capturando a imensidão atordoante da floresta e os rios serpenteantes que simbolizam o fluxo inescapável do destino. Não à toa, o título dado em inglês foi Rivers of Fate (rios do destino).
A jovem, o bandido e a mãe
O roteiro foi desenvolvido por Bráulio Mantovani (também roteirista de Cidade de Deus), Fernando Garrido e Stephanie Degreas, tendo por eixo uma trama que entrelaça as histórias de três personagens centrais cujas vidas se cruzam: Janalice, uma adolescente vítima de uma rede de tráfico humano; Preá, o filho de um líder de uma gangue de criminosos fluviais; e Mariangel, uma mãe impulsionada por uma vingança implacável após a morte de sua família. A partir daqui, esteja avisado o leitor, haverá spoilers.
Apesar do sucesso no lançamento, Pssica tropeça em falhas gritantes. Infelizmente, o roteiro escorrega em inconsistências. Um exemplo flagrante é a súbita paixão de Preá por Janalice, que acontece sem que ele mal a tenha visto e mudando abruptamente a caracterização do personagem dali por diante. O que era um personagem inicialmente motivado por ambições criminosas, muda toda a sua trajetória de uma hora para outra, tornando-se um romântico obcecado e tolo, sem cenas de interação que justifiquem essa virada.
Outra falha evidente é a pouca história pregressa de personagens principais, excetuando a de Janalice. Preá e Mariangel são, no máximo, esboçados. Qual é o passado de Preá que o torna tão suscetível a essa paixão por Janalice? Haveria nele um conflito moral por ser bandido? Por que e como Mariangel se tornou soldado e como veio parar no Pará morando numa casa/bar fluvial? Isso resulta também em um ritmo irregular: os dois episódios iniciais até são promissores, com as histórias sendo desenvolvidas, mas os dois finais aceleram resoluções, saltando explicações, deixando lacunas consideráveis.
A alma da narrativa
As interpretações, talvez por isso mesmo, são irregulares e, em grande parte, sofríveis. Excetuando a das atrizes principais, o restante do elenco não ajuda. Domithila Cattete, como Janalice, entrega uma boa performance, conseguindo transmitir espanto, incompreensão, dor, raiva e coragem, muito mais com suas expressões faciais e posturas corporais do que com diálogos. Sua atuação é o coração da série. Marleyda Soto, no papel de Mariangel, complementa isso com uma presença marcante, adicionando profundidade a uma personagem que poderia ser estereotipada, como acabam sendo os demais, com atores não conseguindo fazer o mesmo que ela. São ambas quem conferem alma à narrativa.
Se, por um lado, a minissérie demonstra o potencial da produção brasileira e o valor das adaptações literárias nacionais, por outro também evidencia o quanto podem ser melhoradas, estando ainda distantes da excelência em vários aspectos. Para futuros projetos de adaptação, Pssica deve servir como um estudo de caso sobre a importância do desenvolvimento cuidadoso de personagens e da coerência narrativa, elementos essenciais para o sucesso de qualquer produção audiovisual, especialmente quando se trata de transpor obras literárias.

O sucesso de Pssica demonstra que o público brasileiro responde positivamente a produções nacionais, independentemente de obrigatoriedades legais. Isso levanta questões importantes sobre o papel de políticas públicas: seriam elas necessárias para garantir espaço e investimento contínuo em produções nacionais, ou o mercado naturalmente privilegiaria conteúdo que o público considera de qualidade?
- Pssica
- 2025
- 4 episódios
- Indicado para maiores de 18 anos
- Disponível na Netflix
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