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Há décadas, o sacerdote petista Frei Betto insiste em um Cristo de palanque – um sindicalista avant la lettre, militante das causas revolucionárias que marcaram o século 20 com uma pilha de cadáveres. Seu livro Jesus Militante: Evangelho e Projeto Político no Reino de Deus, publicado em 2022, é apenas o mais recente esforço nesse sequestro simbólico. Parece que, a cada lançamento, o frade marxista e dominicano (esse excêntrico oxímoro) decide repetir a experiência dos regimes totalitários que, ao manipular a linguagem, reduziram a palavra à caricatura. Aqui, o objeto não é um substantivo qualquer, mas o próprio Nome acima de todos os nomes.
Por óbvio, não se trata de uma interpretação inocente, mas de um projeto político disfarçado de exegese. Como advertiu Juan Donoso Cortés, não há nada mais perigoso do que tentar domesticar Cristo para encaixá-lo nas medidas de um programa terreno: “Quando tudo é Deus e Deus é tudo, Deus é, sobretudo, democracia e multidão (...) Daí esse soberbo desprezo dos comunistas pelo homem e essa insolente negação da liberdade humana.”
O núcleo de Jesus Militante é simples até o ponto da banalidade: Jesus teria sido um militante político, engajado na luta contra o Império Romano e a favor dos pobres e marginalizados de seu tempo. Segundo essa leitura, o Reino de Deus seria um projeto histórico de emancipação, uma espécie de prévia do socialismo terceiro-mundista tão sonhado pelos teólogos da libertação. Frei Betto chega a insinuar que o Nazareno teria sido, em certa medida, um “organizador de base”, um agitador contra o status quo. Em suma: um piqueteiro.
Tudo soa familiar. Tudo cheira a naftalina. Trata-se do sempiterno bordão, repetido exaustivamente desde os anos 1970, segundo o qual Nosso Senhor Jesus Cristo teria seguido à risca a cartilha marxista. A diferença é que, em pleno século 21, depois de toda a tragédia humana perpetrada pelo assim chamado “socialismo real”, insistir nessa leitura beira a nostalgia kitsch. O “Jesus militante” de Betto é um primo pobre do “Cristo revolucionário” de Ernesto Cardenal e companhia, apenas reciclado para o consumo dos revolucionários contemporâneos.
No entanto, como antídoto contra o veneno doutrinário injetado pelo frei petista, qualquer página da boa e velha exegese católica é suficiente. Em sua trilogia Jesus de Nazaré (2007–2012), por exemplo, o cardeal Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI) dedica longas linhas à refutação precisa da tese do Cristo político. Ele lembra que o Reino de Deus pregado por Jesus não era um programa revolucionário, mas a irruptura do próprio Deus na história. Não se tratava de trocar um sistema de dominação por outro, mas de uma metanoia radical: a transformação do coração humano – de pedra a carne.
Em O Senhor, de 1937, Romano Guardini já advertia contra essa redução, mostrando como Jesus deliberadamente recusa as tentações de se tornar um messias político – tentação que já aparece no episódio do deserto e reaparece na multiplicação dos pães, quando a multidão quer fazê-lo rei. Nas palavras do grande teólogo ítalo-germânico:
“Jesus não é meramente uma grande figura de caridade, dotada de um coração ilimitado e uma imensa capacidade de serviço. Ele não procura rastrear o sofrimento humano até a sua raiz para erradicá-lo. Não é um reformador social lutando por uma distribuição mais justa da riqueza material. O reformador social busca atenuar o sofrimento; se possível, eliminá-lo. Ele tenta responder às necessidades humanas de modo prático: prevenir desgraças, reajustar condições para que pessoas felizes, física e espiritualmente saudáveis, habitem a terra. Uma vez que compreendemos isso claramente, percebemos que, para Jesus, o problema é de ordem bem diversa. Ele enxerga o mistério do sofrimento de maneira muito mais profunda — lá na raiz da própria existência humana, inseparável do pecado e do afastamento de Deus. Sabe que o sofrimento é a porta na alma que conduz a Deus, ou ao menos pode conduzir a Ele; fruto do pecado, mas também meio de purificação e de retorno. É isso, evidentemente, o que significam suas palavras sobre tomar a cruz e segui-Lo.”
Também o cardeal francês Henri de Lubac, em Catolicismo, os Aspectos Sociais do Dogma (1938), denunciou a tendência de reduzir o cristianismo a um movimento sociopolítico. Para ele, a fé cristã é, antes de tudo, comunhão com Deus, e só a partir dessa comunhão pode transbordar em fraternidade humana. Inverter essa ordem, diz Lubac, é transformar Cristo em mero estandarte ideológico. Escreve o autor:
“Estamos hoje mergulhados no tempo. O imenso sucesso das filosofias do devir, assim como as dolorosas reações que depois vieram comprometer o seu império, tiveram sobre este ponto o mesmo resultado. Ilusões e temores, esperança no porvir e ansiedade pelo amanhã monopolizam nossa consciência, exacerbando-se pela força de seu contraste. Sonhos de uma cidade harmoniosa e de um progresso indefinido, ou o trágico sentimento do caos em que nos debatemos sob o peso de um dia insuportável, o pavor de catástrofes iminentes ou a tensão em direção a um futuro ignorado do qual se esperam todos os bens — tudo isso mascara igualmente, a nossos olhos, o presente real. Numa era em que o homem conquista enfim, como recompensa de seus esforços titânicos, algumas satisfações, já não sabe conceder-se a satisfação essencial que o salvaria de si mesmo e, ao mesmo tempo, o ajudaria a encontrar-se (...) Aqui nos deparamos de frente com as místicas e as ideologias que lutam neste momento pela conquista do mundo, e especialmente com a mais poderosa de todas: o marxismo (...). Há no homem um elemento eterno, uma ‘semente de eternidade’ que, desde já, ‘respira para além do tempo’, que sempre, hic et nunc, escapa à sociedade temporal. A verdade de seu ser transborda o próprio ser. Pois ele foi feito à Imagem de Deus, e no espelho de sua alma contempla-se sempre a Trindade... Mas não é senão um espelho, não é senão uma imagem. Se o homem, com um gesto sacrílego, inverte a relação, se pretende apropriar-se dos atributos usurpados à divindade, declarando que é Deus quem foi feito à sua própria imagem, então destruiu-se a si mesmo. A Transcendência que rejeita era a única garantia de sua própria imanência. Somente reconhecendo-se como reflexo alcançava a plenitude, e unicamente no ato de adoração assegurava para si uma inviolável profundidade (...). Nada poderá jamais impedir que, numa sociedade não transcendente, a redução do homem às suas ‘relações sociais’ não se opere em detrimento da interioridade pessoal, e não engendre, seja qual for a novidade de seu método, a tirania.”
Um dos pontos centrais da leitura de Betto é a ideia de que Jesus se colocou ao lado dos “pobres” contra os “ricos”, inaugurando uma espécie de luta de classes protomarxista. Ao contrário da exegese tradicional dos Evangelhos, para o sacerdote do lulopetismo, Jesus não foi a prefiguração do Eterno na Terra, mas uma espécie de antecessor (ainda imperfeito) de Karl Marx. Não foi o Logos encarnado, mas a klassenlose Gesellschaft (“sociedade sem classes”) encarnada.

No entanto, se há algo no qual a tradição evangélica e patrística sempre insistiu é a afirmação de que o Senhor não tomou partido sociológico, mas espiritual: sua solidariedade com os “pobres” era expressão de uma economia da salvação, não de uma proposta revolucionária materialista. Como bem apontouPlinio Corrêa de Oliveira em Revolução e Contra-Revolução (1959), a tentativa de infiltrar no seio da Igreja uma leitura “progressista” que reduza o sobrenatural a uma mera categoria política é nada menos que herética. Eis precisamente a leitura de Frei Betto, que reduz Jesus Cristo a um agitador de assembleia.
Esse reducionismo só foi possível graças a uma seletividade exegética brutal. Passagens que indicam claramente a transcendência da missão de Cristo na Terra são silenciadas, enquanto outras, mais suscetíveis a interpretações sociais, são exageradas até a distorção. Assim, por exemplo, o episódio da expulsão dos vendilhões do templo é elevado à categoria de manifesto revolucionário, quando a tradição católica sempre o concebeu como purificação do culto e sinal da autoridade divina de Cristo.
Jesus Militante está repleto de anacronismos. O autor projeta categorias modernas – “imperialismo”, “resistência popular”, “luta de classes” – sobre o contexto judaico do século I, que nada tinha a ver com essas palavras de ordem. O que surge daí é uma ficção exegética: uma narrativa em que Jesus não é mais o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, mas um “companheiro de trincheira”, engajado em insurgências sociais.
O ponto talvez mais grave da obra é a confusão entre o Reino de Deus e uma utopia política. O sacerdote do lulopetismo parece acreditar que Jesus veio anunciar uma nova ordem sociopolítica, quando o que os Evangelhos relatam é o anúncio de uma nova ordem escatológica, fundada na reconciliação entre Deus e o homem.
Como se sabe, coube a Santo Agostinho a função de consagrar filosoficamente a “dupla cidadania” do cristão, já expressa nas Escrituras na célebre passagem: “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.
Em A Cidade de Deus, o bispo de Hipona argumentou que, durante sua vida na terra, o homem habita dois reinos, a cidade terrena e a cidade celeste, devendo, para cada um deles, prestar contas de modo distinto. À cidade terrena não cabe lidar com a questão do destino final dos homens. Suas atribuições são limitadas, o que equivale a afirmar que, no interior de cada indivíduo, há uma espécie de santuário de consciência protegido do controle político e social.
Ao mesmo tempo, a afirmação de que “meu reino não é deste mundo” implica que o domínio da igreja também tem limites, uma vez que Deus delegou parte de sua criação para administração terrena. O domínio de Deus é o domínio da Igreja, onde as leis divinas são soberanas.
Há, todavia, uma esfera secular que opera fora desse controle, o que confere ao Cristianismo uma configuração sui generis, tanto temporalmente (não havia antes, no mundo pagão), quanto geograficamente (pois ainda hoje não sobrevive fora de uma matriz civilizacional cristã): um único e mesmo Deus rege todo o universo, mas cada nação ou comunidade é soberana para guiar sua existência mundana, suas leis, seus costumes, ou, em suma, sua cultura.
É significativo que Agostinho tenha adotado um conceito que, originalmente, servia para delimitar uma unidade política especifica – a cidade, a pólis grega – para opor as ideias de terreno e celeste, ou imanência e transcendência. Sendo um dos primeiros pensadores a refletir sobre o tema da sociedade civil na nova situação histórica surgida com a emergência da religião revelada, Agostinho decerto achou por bem utilizar o vocabulário clássico da ciência política da época, que começara com Platão, passara por Aristóteles, e chegara ao mundo latino via Marco Túlio Cícero, e com o qual ele e seus contemporâneos estavam familiarizados.
Ocorre que, empregando uma mesma terminologia, Agostinho conferiu-lhe um sentido inteiramente novo, já que sua distinção entre os dois tipos de “cidade” – a terrena e a celeste – era uma distinção escatológica e não política. Segundo a doutrina agostiniana, toda sociedade política inclui necessariamente membros das duas “cidades”. Nenhuma sociedade ou instituição existente pode ser identificada exclusivamente com qualquer uma delas. Trata- se, para Agostinho, de uma distinção entre aqueles que estão e aqueles que não estão destinados à vida eterna junto a Deus, não de uma divisão entre membros e não-membros de uma determinada configuração sociopolítica. Os membros das duas cidades estão misturados naquilo que Agostinho chama de saeculum, o reino da existência temporal no qual tem lugar a arte da política.
Mas Frei Betto tem pressa. Seguindo a velha tradição milenarista, ele quer subsumir a cidade de Deus dentro de uma nova cidade terrena, a cidade dos homens novos que ele pretende fundar aqui e agora. Abandonando (ou, diria Voegelin, imanentizando) a escatologia cristã, ele só quer saber em transformar a ordem sociopolítica presente, ainda que o custo seja apoiar projetos totalitários de poder e, pior ainda, fazer de Jesus Cristo um seu acólito.
A consequência final da leitura marxista de Betto é a desfiguração de Cristo. Em vez do Verbo encarnado, Filho de Deus feito homem para a salvação do mundo, temos um agitador político condenado pelo establishment. No lugar do Cordeiro que tira o pecado do mundo, surge um mártir da luta de classes. Substituindo a cruz redentora, erguem-se a foice e o martelo.
Resta que o próprio Jesus rejeitou essa caricatura. No momento em que Pedro empunha a espada para defendê-lo, Ele ordena: “Embainha a tua espada” (Jo 18,11). Dificilmente poderia haver recusa mais clara da lógica revolucionária. Como lembra Bento XVI, “a cruz não é derrota política, mas vitória sobre o pecado e a morte.”
Se tivesse sido contemporâneo a Jesus, Betto decerto faria como Pedro, instigando Jesus a resistir político-militarmente aos seus perseguidores em Jerusalém. Mas, ao contrário do primeiro Papa, o sacerdote lulopetista não se teria curvado à reprimenda divina: “Afasta-se, Satanás! Você é uma pedra de tropeço para mim, e não pensa nas coisas de Deus, mas nas dos homens” (Mt 16, 23). Obstinado, lá estaria ele novamente ao pé da cruz, tentando Nosso Senhor como fizeram os fariseus e os soldados romanos: “Se és filho de Deus, desce da cruz!” (Mt 27, 40).
No fim, o Jesus de Betto não passa de um fantasma ideológico – um Cristo de cartaz, condenado a repetir slogans caducos. O verdadeiro Senhor, porém, não se deixa sequestrar: continua sendo aquele que venceu o mundo, não para instaurar uma república socialista, mas para abrir, de uma vez por todas, as portas da eternidade.
O padre comunista peca contra o Espírito Santo, ignorando a advertência de Guardini e outros autênticos exegetas católicos: “Jesus não pode ser manipulado. Ele não é peça de propaganda. Ele é o Senhor.” Que o autor queira condenar-se à danação eterna, é questão de decisão individual. Que para aí pretenda levar os leitores consigo, é algo que, com o presente texto, este resenhista busca impedir.
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