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"Ora, são anjos. Anjos como lá no céu", diz o personagem John Coffey durante uma passagem do filme À Espera de um Milagre. O gigante bondoso da obra baseada em um livro de Stephen King solta a frase ao ser impactado por um número de dança estrelado por Fred Astaire e Ginger Rogers, que vivem os protagonistas do longa-metragem O Picolino.
Completando 90 anos em 2025, a produção ficou marcada pela canção Cheek to Cheek, regravada por Frank Sinatra e Tony Bennett, além de ser posteriormente referenciada em filmes como A Rosa Púrpura do Cairo e a animação O Poderoso Chefinho. Mas por que a película e seu tema principal continuam sendo lembrados por tantos cineastas?
O Picolino foi um marco em Hollywood, enchendo os cinemas e agradando a inúmeros críticos de cinema – atualmente, tem 100% de aprovação na plataforma de avaliações Rotten Tomatoes. Seu grande impacto tem a ver com o fato de ofertar uma história leve durante um dos períodos mais obscuros dos Estados Unidos, que vivia o auge da Grande Depressão, em 1935. Durante esse período de turbulência econômica, muitos estavam desempregados e endividados, o que impulsionou um aumento de suicídios entre os americanos – em 1932, a taxa subiu de 17 pessoas a cada 100 mil para 21 a cada 100 mil.
Indo na contramão do triste momento histórico, O Picolino retrata pessoas estilosas, vivendo o melhor da vida e se divertindo. O roteiroacompanha Jerry Travers, um dançarino americano vivido por Astaire. Ele é levado a Londres para se apresentar, mas no caminho acaba se apaixonando pela bela Dale Tremont. Outros personagens aparecem na trama, como o mordomo que se refere a si próprio no plural, ou o italiano que, além de dramático, confunde o significado de algumas palavras em inglês. Com tons de comédia, romance e até drama, a produção avança mostrando os encontros e desencontros do casal, que por um mal-entendido acaba se afastando e gerando um grande escândalo para Travers.
As penas da discórdia
O momento em que Cheek to Cheek toca no filme é justamente aquele no qual o casal finalmente se apaixona, gerando a promessa de um final feliz para todos os espectadores. À época, o cinema evitava desfechos amargos ou tristes, como o de À Espera de um Milagre.
Seu primeiro verso, “Heaven, I’m in heaven” (Céu, estou no céu), é um verdadeiro chiclete que grudou na cabeça de diferentes gerações de cinéfilos. Seja pela voz suave de Astaire ou pelo triste lamento de Coffey na cadeira elétrica (momento eternizado pelo ator Michael Clarke Duncan), a canção guarda um pouco da extinta magia do cinema em seus primórdios, marcado por atuações exageradas, musicais grandiosos e números de sapateado.
É curioso saber que essa passagem, tão associada ao sentimento de esperança e beleza, ocasionou um certo desentendimento entre Astaire e Ginger nos bastidores. A atriz, que se arriscava como designer de roupas, insistiu em usar na cena um vestido confeccionado por ela própria. O problema é que sua criação soltava inúmeras penas de avestruz pelo set e sobre seu parceiro de cena.
“Foi como uma galinha atacada por um coiote, nunca vi tantas penas na minha vida”, chegou a escrever Astaire em sua autobiografia Steps in Time, publicada em 1959. Na hora, ele se irritou com Ginger e gritou com ela, deixando a atriz em prantos. Uma costureira foi acionada depois do episódio, passando uma noite consertando o vestido, assim evitando a soltura de outras penas. Os astros conseguiram regravar a cena e fizeram as pazes, com Astaire presenteando sua parceira com uma pena de ouro e cantando uma paródia de Cheek to Cheek, trocando “Heaven, I’m in heaven”por “Feathers, I hate feathers”(Penas, eu odeio penas).
A origem da cartola do vilão
Seis anos depois de O Picolino, uma série de quadrinhos chamada Detective Comics (conhecida hoje pelo acrônimo DC) inventou um personagem chamado Pinguim. O vilão do Batman é marcado por seu visual: roupa de gala, cartola, gravata borboleta e monóculos. Naquela época, isso ainda era comum, mas seria incomum um mafioso trajado dessa maneira nos dias atuais.
Uma das referências mais recentes de O Picolino na cultura pop apareceu na minissérie Pinguim, que conta a história de origem do bandido. O diretor e roteirista Matt Reeves justificou que o uso da cartola pelo protagonista se dá pelo fato dele ter assistido ao filme O Picolino na infância. Então, para o Pinguim, a obra traz conforto e a lembrança de tempos mais simples, antes de se tornar um chefão do crime em Gotham.
Seja em momentos de nobreza ou de desespero, a trinca O Picolino, Cheek to Cheek e Fred Astaire está longe de perder sua relevância no imaginário popular. Enquanto cineastas seguirem prestando homenagens à obra e intérpretes revisitarem sua trilha sonora, esse clássico da Era de Ouro de Hollywood permanecerá inesquecível.
- O Picolino
- 1935
- 101 minutos
- Classificação indicativa livre
- Disponível no Looke e para locação em Apple TV






