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Disponível na Netflix, a série documental O Homem com Mil Filhos acompanha a trajetória de Jonathan Meijer, um holandês que se tornou doador de esperma cadastrado em várias clínicas e sites e, segundo estimativas, é pai biológico de ao menos 500 crianças, podendo ultrapassar mil em escala global.
Apesar de apenas tangenciar a gravidade do assunto, o caso apresenta uma mostra da sequência de absurdos que ocorrem em decorrência da fertilização artificial. A reflexão mais importante da obra é: até onde vai a dignidade humana quando a fertilização in vitro (FIV) se torna uma mercadoria sem controle?
Falhas graves no sistema regulamentar
A série apresenta um recorte investigativo do caso, reunindo depoimentos de mães, médicos, advogados e defensores da regulação em relação à reprodução assistida. O fio narrativo se desenrola a partir da denúncia de mulheres que descobriram, por meio de grupos de pais e testes genéticos, que seus filhos tinham incontáveis irmãos biológicos espalhados pelo mundo.
A partir de então, o documentário revela as lacunas existentes nas regulamentações nacionais e internacionais que regem os métodos artificiais de reprodução. Na Holanda, país de origem de Meijer, há um limite oficial de 25 crianças por doador, distribuídas entre no máximo 12 famílias. No entanto, como o sistema de controle é descentralizado e falho, ele conseguiu burlar as regras usando nomes falsos e doando tanto em clínicas quanto de forma particular.
Ao longo da produção, dividida em três episódios, depoimentos são intercalados por encenações de alguns relatos. Entre imagens de arquivo, vídeos feitos pelo próprio Meijer (que mantém uma presença ativa nas redes sociais) e reportagens de TV, a obra constrói um retrato amplo da situação. Do mesmo modo, especialistas convidados analisam com preocupação as comunidades onde crianças com o mesmo pai biológico crescem juntas sem saber de sua relação parental. Ou seja, há grandes riscos de incesto não intencional, e esse é o dilema ético de maior gravidade apontado ao longo da narrativa.
O documentário acompanha tanto a interação entre as famílias envolvidas, como a reação delas diante da disputa judicial que culminou no impedimento de Meijer de continuar doando esperma. Após o tribunal holandês concluir que ele intencionalmente divulgou número inferior de descendentes — o que ocorreu em 2023 —, Meijer está sujeito a uma multa de 100 000 euros por infração, sendo impedido de doar sêmen no país.
Além disso, são exploradas as consequências emocionais para os filhos e para as mães envolvidas. Algumas relataram sentimentos de traição ao saberem que o doador havia omitido informações importantes sobre seu histórico. Outras expressam medo pelas possíveis implicações futuras para a identidade e saúde mental de seus filhos, que passaram a fazer parte de uma rede extensa de meio-irmãos sem qualquer vínculo familiar tradicional.
O que diz o frenético doador sobre o documentário
Jonathan Meijer, por sua vez, não quis participar do documentário. Mas ele possui um canal no YouTube ativo, com mais de 26 mil seguidores, por meio do qual narra suas impressões sobre assuntos aleatórios enquanto viaja ao redor do mundo. Nos vídeos, ele expressa a intenção de que seus descendentes acompanhem o genitor pelas redes, conhecendo como ele é e o que pensa da vida. A atitude blogueirinha do “pai de mil” é chamada de narcisista e patológica por parte das mães no documentário.
Em entrevista na TV pública holandesa (NPO 1), realizada em setembro de 2024, Meijer informou que não apenas contestou publicamente as informações da Netflix, como entrou com uma ação judicial solicitando a retirada da série do catálogo e uma correção nos dados divulgados. Segundo ele, o número de filhos foi exagerado. Em vez de mil, foram “apenas” 550. Ele considerou o título e a narrativa “enganosos” e rotulou o material como “sensacionalista”. No entanto, até agora, a plataforma não comentou nem retirou o programa do ar.
Em julho de 2024, Meijer fez um vídeo no seu canal comentando o documentário da Netflix, mas não se mostrou arrependido. Ao contrário, ele expressou sua felicidade em ser doador, mesmo deixando de sê-lo em 2019, quando chegou, segundo ele, às 550 crianças.

Por meio de um comentário fixado, o doador serial informa que visita algumas famílias, que mantém boa relação com os clãs para os quais foi doador particular e que ainda continua “ajudando” as já existentes, providenciando “irmãos para os filhos anteriores”.
Meijer conclui sua nota de avaliação do documentário dizendo que “a demanda por doadores é alta” e convoca homens que “levantem sua bunda preguiçosa” até o banco de esperma mais próximo para “ajudar a resolver” o problema. Ele encerra com a frase: “Se os homens continuarem sendo preguiçosos e só jogando videogame, a escassez de doadores vai continuar.”
Um alerta sobre a banalização da vida
Apesar da complexidade do tema, a série restringe seu recorte narrativo à opinião daqueles que optaram pela fertilização artificial e constrói seu argumento por meio de dados, fatos e análises técnicas.
Por fim, O Homem com Mil Filhos permite que o espectador tire suas próprias conclusões, sobretudo sobre outros e demais dilemas morais da reprodução artificial. Além de expor o caso do homem inconsequente que brincou de bater recorde em quantidade de rebentos, mas abriu mão da paternidade, a série abre um leque de discussões possíveis sobre até onde a ciência pode ir quando se trata da criação (e o abandono) da vida humana.
- O Homem com Mil Filhos
- 2024
- 3 episódios
- Indicado para maiores de 12 anos
- Disponível na Netflix







