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Uma curiosidade desta editoria de cultura da Gazeta do Povo. Pouco mais de um ano atrás, publicamos um texto recomendando três faroestes disponíveis no streaming, filmes que passavam despercebidos até então. O texto viralizou de forma surpreendente. A partir dali, todo texto sobre faroeste publicado no jornal tem audiência garantida e boa recepção dos leitores.
Inicialmente, isso parecia indicar que o assinante médio do jornal seria homem, de mais idade, nostálgico dos áureos tempos dos faroestes no cinema. Entretanto, os mesmos textos se tornaram referência também para não-assinantes, circulando além da base tradicional de leitores.
Isso revela algo fascinante sobre nosso momento cultural. Em uma era dominada por super-heróis e ficção científica, por que um gênero centenário, aparentemente datado, mantém essa capacidade de mobilizar audiências? A resposta talvez esteja na natureza fundamental do faroeste.
Esta Gazeta do Povo é um tradicional jornal paranaense com perfil editorial conservador, com convicções claras publicadas. Deduz-se que a maioria de seus leitores, assinantes ou não, comungam desse perfil.
Significa dizer que, politicamente, esse público demonstra afinidade com valores como a defesa da propriedade privada, a valorização da família nuclear e o ceticismo em relação ao papel expansivo do Estado. Culturalmente, manifestam preferência por narrativas que exaltam o mérito individual, a responsabilidade pessoal e a justiça baseada em princípios morais absolutos, não raro com uma visão nostálgica de períodos históricos percebidos como mais ordenados e moralmente claros do que o vivido atualmente.
O cinema de faroeste, com sua mitologia particular, oferece precisamente esses elementos. Como gênero, emergiu nas primeiras décadas do século XX como uma das mais duradouras e influentes tradições do cinema americano. Desde os pioneiros filmes mudos de Edwin S. Porter até os clássicos de John Ford, Howard Hawks e, posteriormente, Sergio Leone, o gênero evoluiu mantendo núcleos temáticos consistentes.
Sensibilidade conservadora
Os anos dourados (1930-1960) estabeleceram os arquétipos fundamentais: o caubói solitário, o xerife íntegro, a cidade fronteiriça ameaçada, e a natureza selvagem como cenário de provação moral. Posteriormente, o "spaghetti western" e revisões contemporâneas como Dança com Lobos e Os Imperdoáveis tornaram mais complexas essas fórmulas, mas sem abandonar seus apelos fundamentais.
O faroeste tradicionalmente celebra valores que ressoam profundamente com sensibilidades conservadoras. Há o individualismo heroico de um protagonista autossuficiente que resolve problemas por meio de competência pessoal e determinação moral, sem depender de instituições burocráticas. Há a justiça moral como superior à justiça institucional, muitas vezes corrupta ou inadequada. Há uma tentativa de criar ou manter uma ordem incipiente ameaçada por forças hostis (bandidos, nativos, elementos naturais), exigindo a intervenção de heróis dispostos ao sacrifício pessoal.
Além disso, criou-se a mitologia do Velho Oeste como um espaço de possibilidades onde o mérito individual determinaria o destino, contrastando com a complexidade e corrupção da vida urbana emergente. A convergência entre valores conservadores e a mitologia do faroeste é manifesta quando constatamos esses pontos. A valorização da propriedade privada encontra paralelo nas narrativas sobre rancheiros defendendo suas terras contra invasores. A família como instituição fundamental aparece constantemente como motivação heroica ou objetivo a ser protegido.
No fim das contas, o gênero faroeste, nos dias de hoje, apela à nostalgia conservadora por um passado percebido como mais simples e moralmente claro. Nessa visão, existiam vilões identificáveis, heróis inequívocos, e problemas que podiam ser resolvidos pela ação direta e princípios morais absolutos. Mas essa nostalgia não é meramente estética, também é política: representa o anseio por uma sociedade onde as hierarquias eram "naturais", os papéis sociais claramente definidos pela pessoalidade de seu exercício, com a justiça emanando de princípios morais universais, em vez de complexas negociações institucionalizadas.
Confirmação de valores
Além disso, para muitos leitores desta Gazeta do Povo, especialmente aqueles acima dos 50/60 anos, os faroestes representam conexões emocionais com a infância e juventude. Esses filmes eram onipresentes na televisão brasileira das décadas de 1960-1980, criando uma geração que associa o gênero a um período percebido como mais seguro e estável. Em uma época de crescente complexidade social e moral, o faroeste oferece o conforto de narrativas onde o bem e o mal são claramente delineados. Para um público conservador frequentemente crítico da "relativização moral" contemporânea, essas histórias proporcionam alívio psicológico e confirmação de valores.
Tudo isso parece explicar a ressonância do gênero no público de hoje em dia, que contrasta com boa parte da produção cultural atual, marcada pela ironia constante e relativização de valores. Talvez seja essa capacidade de servir como espelho de algo universal da condição humana que explique a longevidade do gênero. Cada geração o redescobre e reinterpreta segundo suas próprias ansiedades. Nos anos 1950, processava-se questões da Guerra Fria e do conformismo social. Nos anos 1960-70, lidava-se com a contracultura. Nos anos 1990, explorava-se a violência urbana e a perda de inocência. Hoje, parece falar sobre autenticidade numa era de simulacros, sobre construção de comunidade quando forças centrífugas nos separam, sobre manutenção de princípios quando a única constante é o relativismo das mudanças.
Há algo mais que os filmes de faroeste espelham. Vários filmes não retratam apenas a conquista do "Oeste selvagem", mas os momentos de transição e transformações que essa mesma conquista gerou. Não por acaso, os grandes clássicos do gênero – de No Tempo das Diligências a Os Imperdoáveis – invariavelmente retratam o fim de uma era: homens e mulheres tentando encontrar lugar num mundo que não os quer mais.
Um mundo que muda muito rapidamente pelo progresso simbolizado, em geral, pela chegada da linha férrea aos vilarejos. Essa temática ressoa porque vivemos nossa própria era de profundas transformações. Estruturas que pareciam permanentes se dissolvem, do emprego estável às comunidades tradicionais. As profissões desaparecem com a automação e inteligência artificial. Certezas ideológicas se fragmentam. A promessa tecnológica de progresso convive com a sensação de que algo essencial está sendo perdido no processo, exatamente o dilema dos protagonistas do faroeste.
Questões assombrosamente atuais
Talvez a melhor obra a retratar isso seja o clássico O Homem que Matou o Facínora (1962), de John Ford, disponível no Prime Vídeo. Ford não romantiza essa dinâmica de transição. Mostra que o progresso é inevitável, melhora a vida, mas tem custos altos: a perda de autenticidade, de simplicidade, de responsabilidade moral e conexões humanas genuínas. O filme é simultaneamente uma celebração daquela era e um lamento pelo seu fim.

O interesse demonstrado pelos leitores da Gazeta do Povo pelo gênero sugere que essas questões do faroeste permanecem vivas. Quando alguém assiste a um clássico de Ford ou a uma produção contemporânea como a série Yellowstone, não está apenas sendo entretido, está participando de uma conversa centenária sobre o que significa ser humano em tempos de rápida transformação. Não é coincidência que Yellowstone, aliás, tenha se tornado um fenômeno cultural justamente agora. A série explora tensões entre desenvolvimento urbano e vida rural, entre valores tradicionais e modernização acelerada, conflitos que ecoam os dilemas clássicos do gênero, apenas transplantados para o século XXI.
Enfim, o Oeste pode ter sido "conquistado" e transformado, mas suas questões centrais, como manter a dignidade quando seu mundo está acabando, como equilibrar progresso e tradição, como construir civilização sem perder a alma, permanecem assombrosamente atuais. E, pelos números que vemos na editoria de Cultura, essa conversa está longe de se esgotar. Porque há uma sabedoria na nostalgia bem direcionada: ela nos lembra de valores que não deveríamos ter perdido na corrida pelo progresso.





