
Ouça este conteúdo
O humorístico TV Pirata teve vida breve na televisão brasileira. Foi ao ar semanalmente no horário nobre da Rede Globo entre 1988 e 1990, e voltou como atração mensal em 1992. O curto período foi o suficiente para que a atração desde então fosse apontada como uma das mais inovadoras quando o assunto é comédia na nossa TV, com seus esquetes provocadores e absurdos, que davam uma banana para o politicamente correto.
Sob o comando de Guel Arraes e Cláudio Paiva, atores que vinham do teatro e não eram exclusivamente comediantes, levaram para as telinhas quadros de humor que não tinham nada a ver a Praça da Alegria, Chico Anysio Show e demais programas com personagens fixos. O mérito era muito do time de roteiristas, composto por jovens talentos, entre eles todo o elenco do vindouro Casseta & Planeta.
A Rede Globo explorou o saudosismo com o TV Pirata lançando dois DVDs (que hoje custam o olho da cara quando encontrados), exibindo episódios nos canais por assinatura Multishow e Viva (que acaba de ser extinto) e inserindo trechos de Fogo no Rabo (referência a Roda de Fogo), sua mais famosa paródia de novela, no programa Video Show. Desde 2018, o Globoplay é a fonte oficial onde o fã pode rever parte do material produzido pela trupe de Débora Bloch e Luiz Fernando Guimarães, para citar dois rostos emblemáticos da empreitada.
Ao todo, o serviço de streaming oferece 45 amostras de 3 a 16 minutos do que era feito no programa. Do capítulo 1 ao 12, são apresentadas coletâneas de esquetes divididas por temas. Do 13 ao 21, encontram-se quadros clássicos da atração, como TV Macho, Piada em Debate, As Presidiárias e Campo Rural. A série O Segredo de Darcy está concentrada do episódio 22 ao 29. E, como extra, há a totalidade da paródia Fogo no Rabo, dividida em 16 partes.

É muito pouco se pensarmos na grandeza do TV Pirata. Serve apenas para dar um gostinho do que foi ao ar entre 1988 e 1992, com uma curadoria que evitou quadros que dariam chiadeira hoje, como o Black Notícias, em que praticamente todo o elenco fazia a chamada blackface (quando um ator branco pinta o rosto para interpretar um negro) para transformar em funk e rap notícias de violência urbana.
Mesmo nessa pequena amostragem, podemos encontrar piadas que muitos patrulheiros mirins sentiriam prazer em proibir nos nossos tempos, talvez mandando os responsáveis diretamente para o xilindró. A seguir, seis exemplos.
Episódio 1: Brasil
Na primeira coletânea temática disponível no Globoplay, após a divertida paródia do festival Rock in Rio intitulada Brega in Rio, Claudia Raia surge como uma repórter apresentando a chegada dos portugueses ao Monte Pascoal como se fora um desfile de escola de samba. Denise Fraga é chamada para comentar o espetáculo. Ela é creditada como Ceci Brandão, em clara alusão a Leci Brandão, sambista que aumentou sua fama dando pitacos nas transmissões de desfiles e depois virou deputada estadual pelo PCdoB em São Paulo.
Não dá para dizer que Denise faz um blackface, já que seu tipo é indígena e a tinta que ela ostenta no corpo não é tão escura. Mas nos Estados Unidos não faltariam fiscais para dizer que ela fez um redface. E como a turma chata daqui importa todo “mimimi” que vem de lá... Mais engraçado ainda é ver o finado Guilherme Karan como um Pedro Álvares Cabral afetado e pomposo, usando até mesmo a gíria gay “desaquenda” em determinado momento.
Episódio 3: Programas de televisão
No meio da coletânea pinta o Saddam Onze e Meia, paródia do Jô Onze e Meia que passava no SBT – vale dizer que a ida de Jô Soares para a emissora de Silvio Santos foi o que abriu brecha para o TV Pirata (a Tela Quente entrou nas noites de segunda em substituição ao Viva o Gordo e as terças ficaram livres para receber o novo humorístico).
“Com vocês, o tirano mais simpático do Iraque”, ouve-se no anúncio. O saudoso Pedro Paulo Rangel entra em cena com os trejeitos de Jô, interrompe a banda com uma granada, e começa a entrevistar a atriz pornô iraniana Ara Fátima (Marisa Orth). Ela diz que antes de estrelar o filme Kibe Cru, foi eleita Miss Bagdá. Saddam Soares estranha que na faixa de miss esteja escrito “Bagdei” em vez de Bagdá. “É que o pessoal do júri era muito exigente, precisei liberar a Faixa de Gaza”, explica a convidada. A turma que brada “Palestina Livre” aprovaria essa?
Uma amostra do Barbosa Nove e Meia aparece no final da coletânea. Trata-se de Barbosa (Ney Latorraca), o tipo mais famoso do TV Pirata, numa entrevista quase muda com Sassá Mutema (Diogo Vilela, encarnando o personagem de Lima Duarte na novela O Salvador da Pátria). A única palavra que os dois repetem durante o quadro é “ieu”.
Episódio 4: Novelas e filmes
O compilado abre com uma propaganda de Bambi 2 – A Vingança, com Diogo Vilela fazendo um Rambo que passa batom nos lábios e dá piscadelas com cílios postiços no meio da mata fechada. Na sequência, um anúncio da paródia da novela Que Rei Sou Eu?, vertida para Que Gay Sou Eu?. E tome mais uma paródia afeminada de Rambo, com Diogo Vilela rebolando e tocando maracas para anunciar Mambo 2 – A Missão.
Mas o que daria problema hoje é a paródia da novela Tieta, transformada em Dieta. Cheia de enchimentos pelo corpo, Débora Bloch foi a escalada para fazer as danças sensuais que se viam na abertura da novela de 1989, enquanto soa uma versão da música tema consagrada na voz de Luiz Caldas: “Dieta, Dieta/ No ventre de Dieta encontrei um leitãozinho/ Dieta, Dieta/ A boca de Dieta tá cheia de macarrão/ Dieta, Dieta/ No leito de Dieta encontrei um toucinho/ Dieta, Dieta/ Na bolsa de Dieta, cinco quilos de lombinho”. O pessoal que grita gordofobia para tudo certamente não gostaria disso, nem dos personagens obesos da novela se alimentando com sofreguidão ao som de Meia Pizza Inteira, paródia de Meia Lua Inteira, de Caetano Veloso.
Episódio 5: Publicidade
No compilado focado em propaganda de produtos, o destaque é a graça com as sandálias Melissa. Numa sala de aula, uma aluna interpretada por Louise Cardoso aparece vestindo um Melissão, a sandália que vem com um pochetão. “Do número 40 ao 44 bico largo”, diz o locutor. O comercial termina com Louise dando em cima da professora, papel de Regina Casé.
O TV Pirata não tinha qualquer pudor em zombar relações lésbicas. Tanto que um dos quadros que mais fazia sucesso era As Presidiárias, ambientado numa cadeia para donzelas. Quem mais chamava a atenção era Tonhão, personagem de Claudia Raia que estava sempre pronta para cantar as companheiras de cela.
Episódio 6: Política
Marco Nanini apresenta o quadro Direito do Cidadão, destinado a mostrar as mil e uma utilidades da Constituição Cidadã, proclamada em 1988 e vigente até hoje. Só que são serventias bem prosaicas, todas relacionados à forma avantajada do livro, não ao seu conjunto de leis.
A Constituição é usada por uma garota para desempenar um LP, pois veio “para resolver definitivamente o problema da cultura”. Também ajuda uma família que precisa de um calço para a mesa bamba de jantar. “Para garantir a estabilidade”, ironiza o locutor.
A melhor cena é a de um anão, que não tem altura para fazer uso de um telefone público. “A nova Constituição também não esqueceu as minorias”, diz o texto, enquanto o cidadão desprovido de altura busca um livro para subir em cima e finalmente usar o orelhão.
Episódio 11: Família nada tradicional brasileira
Adolfo (Luiz Fernando Guimarães) surge vestido de mulher na cozinha de sua casa para indignação da esposa, interpretada por Cristina Pereira. Ele anuncia que agora se chama Denise: “Estava cansado dessa vida de casado depois de anos e anos. Resolvi assumir minha porção mulher”. A esposa não se faz de rogada: “Quer dizer que agora você é mulher? Pois, então, pode começar a faxina!”
Em outro quadro da coletânea, o TV Pirata é premonitório. Uma mãe e uma tia tentam criar um menino como se fosse menina. Pedro Paulo Rangel faz o garoto indignado com a situação, especialmente com o nome que a mãe quer que ele adote na escola: Rogéria.
- TV Pirata
- 1988-1992
- 45 trechos compilados
- Indicado para maiores de 14 anos
- Disponível no Globoplay





