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O medo é uma de nossas emoções essenciais e a arte, desde suas origens, tem servido como espelho e palco para sua elaboração. Desde os mitos que forjavam imagens do inexplicável até as lendas folclóricas que povoavam a escuridão dos mistérios, o terror sempre permeou as narrativas como uma forma de confrontar o desconhecido.
Foi a partir do século XVIII que o medo ganhou forma e estilo próprios, no que viríamos a chamar de gótico. Horace Walpole, com O Castelo de Otranto, descerrou as portas para cenários sombrios, segredos ancestrais e heroínas em perigo, estabelecendo as bases de um gênero que se consolidaria no século XIX, com mestres como Mary Shelley, com seu Frankenstein, Edgar Allan Poe e seus A Queda da Casa de Usher e O Corvo, e Bram Stoker, que com seu Drácula sedimentou o imaginário mundial sobre vampiros.
Essas obras, dentre outras, ao retratar o monstruoso e o perturbador, ofereciam uma espécie de catarse: um espaço seguro para o leitor ou espectador confrontar suas ansiedades mais profundas, purgar o medo e, de certa forma, reafirmar a ordem diante do caos. Os monstros eram considerados anomalias a serem combatidas, ameaças à 'normalidade', seja da estrutura social vigente ou da suposta vontade de Deus.
Com o século XX e o surgimento do cinema, o terror ganhou novas roupagens. Do expressionismo alemão, que distorcia a realidade para refletir traumas pós-Primeira Guerra Mundial (como em O Gabinete do Dr. Caligari, de Murnau, 1920), ao horror atômico dos anos 1950, que traduzia o temor da Guerra Fria e da ameaça nuclear em filmes sobre ciência descontrolada e mutações (como O Monstro da Lagoa Negra, de Jack Arnold, e Gojira, ambos de 1954). A popularidade da psicanálise, com o medo do inconsciente, influenciou o terror psicológico em filmes como os de Alfred Hitchcock.
O body horror,a partir da década de 1970, surgiria com a crescente preocupação com a saúde do corpo e o desenvolvimento de tecnologias médicas, elevando o medo de doenças e de mutilação ou deformação corporal, como se vê nos filmes de David Cronenberg, particularmente em A Mosca (1986). Um subgênero notório é o slasher, representado por filmes como Halloween (1978), Sexta-Feira 13 (1980), A Hora do Pesadelo (1984) e tantos outros, que também abordavam o temor do crime.
Mais contemporâneo, desponta o horror realista, definido por A Bruxa de Blair (1999), fruto do barateamento das câmeras digitais e da popularização da internet que permitiram um novo tipo de narrativa, repleto de “provas reais” da existência dos mais ancestrais seres monstruosos. Sem esquecer do medo da própria tecnologia ganhando vida autônoma, como nas franquias O Exterminador do Futuro e Matrix, que embora pareçam escapar do universo do terror, refletem igualmente os medos e as neuroses de uma época – no caso, a nossa.
Medos adolescentes
É nessa rica tradição que o seriado Wandinha – cuja primeira parte da segunda temporada está disponível e a segunda parte será disponibilizada em setembro pela Netflix – se insere, homenageando esse legado. A série não apenas revisita o universo gótico e do terror com referências explícitas a Poe (além de sua estátua, a Nevermore Academy, o corvo, dentre outras), Hitchcock (Os Pássaros é referência explícita na segunda temporada, além do suspense psicológico) e Stephen King (Carrie, a Estranha, na temática do bullying da famosa cena do banho de sangue no baile da escola), mas também o atualiza retratando medos mais atuais do universo adolescente.
A relação de Wandinha com sua colega de quarto, Enid Sinclair, é emblemática: Enid representa a hiperconectividade, a busca por validação e a performatividade no mundo virtual (seu blog é fonte de fofocas da escola). Wandinha, por sua vez, representa a recusa a esse mundo virtual, à sua superficialidade e hipocrisia. Ela personifica a autenticidade, ainda que sombria, em uma época de avatares coloridos.
Paradoxalmente, a própria Wandinha funciona como um avatar, mas de uma época passada, manifestando não tanto uma personalidade plenamente formada, mas, sim, uma profunda recusa em conformar-se aos padrões de seus pares contemporâneos. A série, desse modo, ilumina um dos maiores dilemas dos adolescentes de todos os tempos, mas particularmente do atual: o da própria identidade.
Lar de aconchego
Quando Charles Addams, cartunista da prestigiada revista The New Yorker, criou a Família Addams, em 1938, obra subsequentemente adaptada para as telas da TV e do cinema, realizou algo original ao abordar o terror por outra perspectiva, gerando efeito diverso da catarse. A mansão gótica e cheia de armadilhas era também um lar de aconchego. Os hobbies dos personagens envolviam guilhotinas, aranhas e explosivos, mas as relações entre seus membros exalavam também um amor genuíno e até inabalável, ainda que aos olhos do mundo "normal" fossem bizarros, assustadores e, por vezes, perigosos. Essa inversão da expectativa tradicional do terror, com este sendo aceito, vivido e até desejado como parte intrínseca do cotidiano, transformava o que deveria ser aterrorizante em uma sátira mordaz do próprio gênero.
Na Família Addams, o bem e o mal apareciam misturados e não claramente separados, em contraste com o maniqueísmo comum nas obras góticas e de terror. Seriam os Addams monstros mascarando sua perversidade com a aparência de uma família amorosa (embora atípica), ou uma família repleta de idiossincrasias, cujo amor genuíno, paradoxalmente, continha a perversidade por um lado e até propiciaria sua possível transmutação? O temor que a Família Addams evoca no espectador talvez seja o maior de todos: quem garante que, na conta de nossas maldades e bondades nesta vida e apesar de todo o amor, o saldo final seja positivo? Em Wandinha, essa tensão é retomada. Seria ela uma psicopata “pronta e acabada” ou uma adolescente ainda em formação, cuja inclinação ao mal poderia ser direcionada para o bem?
Isso nos leva à sabedoria de G. K. Chesterton, que afirmou ser importante as crianças conhecerem histórias sobre dragões, "não para saberem que existem, mas para saberem que podem ser derrotados". No caso de Wandinha, o "dragão" não é um monstro exterior a ser combatido com seus poderes, mas justamente o perigo de se tornar uma psicopata indiferente a tudo e a todos, uma alma vazia incapaz de empatia e conexão genuína. Sua jornada, marcada por seu ceticismo e frieza, é um embate contra essa potencial solidão existencial e o risco de uma inteligência brilhante desprovida de compaixão.
A força do afeto
A "cura", ou melhor, a superação desse "dragão", manifesta-se nas relações amorosas que ela gradualmente constrói, ainda que à sua revelia. Seus raros, mas significativos, sorrisos, seja ao reencontrar Tio Chico na primeira temporada, seja ao encontrar sua avó na segunda, ou mesmo nos momentos de vulnerabilidade com Enid, Tyler e Xavier, são provas de que, mesmo para a mais gótica das adolescentes, a força do afeto e do pertencimento familiar e de amizade pode ser transformadora. Esses momentos pontuam sua jornada, revelando a fresta de sua armadura emocional e a capacidade do amor de amolecer até o coração mais frio, permitindo seu crescimento e amadurecimento.

No final das contas, apesar de todo o verniz macabro, do humor negro e da subversão de gêneros, a mensagem fundamental de Wandinha é, paradoxalmente, mais tradicional e conservadora do que se imagina. A série celebra o valor inestimável da família como porto-seguro e a necessidade do amor como elemento essencial no desenvolvimento da personalidade.
Wandinha, em sua complexidade, nos mostra que a autenticidade e a individualidade não precisam ser sinônimos de isolamento ou misantropia. Pelo contrário, é na aceitação das diferenças, as nossas e as dos outros, e na construção de laços genuínos de afeto que reside a verdadeira força, a capacidade de crescimento e a mais profunda "normalidade" da existência humana. A escuridão no universo Addams, longe de anular a luz, apenas a intensifica, reafirmando que o amor, em sua essência, floresce em qualquer solo, por mais sombrio que seja.
- Wandinha
- 2025
- 16 episódios
- Indicado para maiores de 16 anos
- Disponível na Netflix
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