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Com as indicações ao Oscar de 2025, A Substância coleciona 229 indicações, em categorias diversas, de vários prêmios, tendo vencido 74 vezes até agora. Dentre essas vitórias, as mais significativas foram o prêmio de melhor roteiro no festival de Cannes e o Globo de Ouro de melhor atriz (na categoria “filme musical ou de comédia") para Demi Moore. Haverá spoilers no que segue.
A obra, disponível para streaming na plataforma Mubi, foi escrita e dirigida por Coralie Fargeat, que escolheu Demi Moore depois da leitura da autobiografia da atriz, na qual revelou a relação com seu corpo durante toda sua carreira, algo central em A Substância. O filme conta a história de Elisabeth Sparkle, uma apresentadora famosa de um programa de aeróbica na TV que, ao chegar aos 50 anos de idade, é descartada por ter envelhecido e decide fazer uso de uma substância que a duplica, criando uma versão sua jovem. A atriz foi indicada ao Oscar, assim como a diretora (melhor direção e roteiro original) e também o filme na categoria principal.
A obra tem sido classificada como do gênero body horror (horror corporal, em uma tradução literal), mas isso é enganoso, fazendo o aficionado em filmes de terror se decepcionar e o espectador desinteressado no gênero nem assistir. Não que o filme não contenha horror corporal, no melhor estilo de suas influências confessadas, como A Mosca (1986), de David Cronenberg, e Enigma de Outro Mundo (1982), de John Carpenter, mas isso é parte de algo maior, como acontece em outras das influências da diretora: Robocop (1987), de Paul Verhoeven, que também contém body horror, e até no clássico de Stanley Kubrick, O Iluminado (1980), que possui referência explícita no filme com o corredor vermelho no estúdio de TV.
A forma da obra não se restringe ao horror e à ficção científica – outro dos gêneros em que a classificaram –, com a exibição da decadência corporal e a busca insensata por um elixir da juventude estando mais próximos do que Oscar Wilde criou em seu famoso romance, O Retrato de Dorian Gray (1890). Neste, Dorian permanece jovem enquanto seu retrato pintado e guardado a sete chaves vai não exatamente envelhecendo, mas envilecendo. O retrato registra menos a passagem do tempo na aparência de Dorian do que sua degradação moral. A cada pecado, a cada crime, a feição na pintura se corrompe um pouco mais, deformando sua beleza.
Vaidade desmedida
Em A Substância, a deterioração corporal depois do uso do elixir também acontece por razões outras que não a mera passagem do tempo. Na relação entre Elizabeth e Sue, sua versão mais jovem, interpretadas por Demi Moore e Margaret Qualley, respectivamente, ambas precisariam manter o uso do tempo de cada uma de forma equilibrada (quando uma está desperta, a outra fica em estado de suspensão), mas não conseguem por vaidade e egoísmo, resultando na deformação corporal, símbolo do narcisismo a que a vaidade desmedida conduz.
A forma do filme é a da vaidade da protagonista que vai se tornando doentia à medida que seu desespero aumenta. Desde o primeiro momento, o filme causa estranhamento, parecendo-se mais com um sonho esquisito. Tudo é desmedido, exagerado. Traços corporais de velhice são exacerbados, também os da juventude, tudo é desproporcional. O vilão da história, por exemplo, o diretor da rede de TV, é sempre mostrado com destaque aumentado de algum aspecto físico desagradável (quando urina no banheiro, come de boca aberta, etc) a gerar uma repulsa, que é o que sente Elisabeth por ele.
À medida que a vaidade de Elisabeth vai sendo humilhada, com ela sendo obrigada a encarar o vazio e solidão que é sua vida sem sua beleza física, mais desproporcional tudo vai ficando, com o sonho esquisito se tornando um pesadelo grotesco. O movimento de procurar pela substância salvadora é, na verdade, uma tentativa de se entorpecer na sua realidade. Narcisismo é uma palavra derivada do grego narke, que significa "entorpecido", de onde também se origina a palavra “narcótico”. Quanto mais entorpecida, mais disforme sua vaidade ficava, monstruosa. O fim desse “monstro” nos devolve então à realidade de todo narcisismo: faz da pessoa um nada, desprezível, esquecida em pouco tempo.
Largue a régua
Se Demi Moore, a diretora ou o filme merecem ganhar o Oscar, só quem assistiu aos concorrentes poderia e deveria afirmar. Mas, no Brasil, como tudo vira um Fla-Flu, as indicações de Ainda Estou Aqui provavelmente farão os emocionados – que foram passar vergonha xingando o jornal Le Monde por ter feito uma crítica negativa do filme brasileiro – tratarem os concorrentes, dentre eles A Substância e Demi Moore, como se fossem inimigos, não merecendo nada.
A quem não for contaminado pela substância ufanista, vale a pena assistir a A Substância, especialmente se for mulher, pois permite uma interessante reflexão sobre a perda da beleza física, que está no centro da crise da meia idade feminina. Crise pela qual Demi Moore passava (no pretérito, pois parece que a superou) em sua vida. Como disse em seu discurso de aceitação do Globo de Ouro: “enquanto eu estava em um momento difícil, surgiu na minha mesa um roteiro mágico, ousado, corajoso, fora da caixinha, absolutamente insano, chamado A Substância, e o universo me disse que eu ainda não havia terminado.”
Vale a pena destacar o restante do que falou: “Vou deixar vocês com uma coisa que acho que esse filme transmite para os momentos em que não achamos que somos inteligentes o suficiente, bonitas o suficiente, magras o suficiente, bem-sucedidas o suficiente ou, basicamente, apenas não o suficiente. Uma mulher me disse: ‘Apenas saiba que você nunca será suficiente, mas pode conhecer o valor do seu próprio mérito se simplesmente largar a régua de medir.’ E hoje eu celebro isso como um marco da minha integridade, do amor que me impulsiona e do presente de fazer algo que amo e ser lembrada de que eu pertenço. Muito obrigada.”
Em 45 anos de carreira, Demi Moore nunca havia ganhado um prêmio. Neste contexto, o valor de seu discurso aumenta, com uma demonstração de humildade rara entre celebridades. A humildade de alguém que encarou a realidade de sua meia idade, da perda de sua relevância, de sua beleza física, enfrentando seus fantasmas, os vazios da atenção não mais recebida, saindo mais bela do que antes.

- A Substância
- 2024
- 140 minutos
- Indicado para maiores de 18 anos
- Disponível no Mubi





