Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
A Substância

Vai torcer por Demi Moore? Lição de humildade da atriz a faz merecedora do Oscar

Atriz de 62 anos, Demi Moore precisou esperar 45 para receber um prêmio importante
A atriz de 62 anos Demi Moore precisou esperar 45 para receber um prêmio importante (Foto: Divulgação Mubi)

Ouça este conteúdo

Com as indicações ao Oscar de 2025, A Substância coleciona 229 indicações, em categorias diversas, de vários prêmios, tendo vencido 74 vezes até agora. Dentre essas vitórias, as mais significativas foram o prêmio de melhor roteiro no festival de Cannes e o Globo de Ouro de melhor atriz (na categoria “filme musical ou de comédia") para Demi Moore. Haverá spoilers no que segue.

A obra, disponível para streaming na plataforma Mubi, foi escrita e dirigida por Coralie Fargeat, que escolheu Demi Moore depois da leitura da autobiografia da atriz, na qual revelou a relação com seu corpo durante toda sua carreira, algo central em A Substância. O filme conta a história de Elisabeth Sparkle, uma apresentadora famosa de um programa de aeróbica na TV que, ao chegar aos 50 anos de idade, é descartada por ter envelhecido e decide fazer uso de uma substância que a duplica, criando uma versão sua jovem. A atriz foi indicada ao Oscar, assim como a diretora (melhor direção e roteiro original) e também o filme na categoria principal.

A obra tem sido classificada como do gênero body horror (horror corporal, em uma tradução literal), mas isso é enganoso, fazendo o aficionado em filmes de terror se decepcionar e o espectador desinteressado no gênero nem assistir. Não que o filme não contenha horror corporal, no melhor estilo de suas influências confessadas, como A Mosca (1986), de David Cronenberg, e Enigma de Outro Mundo (1982), de John Carpenter, mas isso é parte de algo maior, como acontece em outras das influências da diretora: Robocop (1987), de Paul Verhoeven, que também contém body horror, e até no clássico de Stanley Kubrick, O Iluminado (1980), que possui referência explícita no filme com o corredor vermelho no estúdio de TV.

A forma da obra não se restringe ao horror e à ficção científica – outro dos gêneros em que a classificaram –, com a exibição da decadência corporal e a busca insensata por um elixir da juventude estando mais próximos do que Oscar Wilde criou em seu famoso romance, O Retrato de Dorian Gray (1890). Neste, Dorian permanece jovem enquanto seu retrato pintado e guardado a sete chaves vai não exatamente envelhecendo, mas envilecendo. O retrato registra menos a passagem do tempo na aparência de Dorian do que sua degradação moral. A cada pecado, a cada crime, a feição na pintura se corrompe um pouco mais, deformando sua beleza.

Vaidade desmedida

Em A Substância, a deterioração corporal depois do uso do elixir também acontece por razões outras que não a mera passagem do tempo. Na relação entre Elizabeth e Sue, sua versão mais jovem, interpretadas por Demi Moore e Margaret Qualley, respectivamente, ambas precisariam manter o uso do tempo de cada uma de forma equilibrada (quando uma está desperta, a outra fica em estado de suspensão), mas não conseguem por vaidade e egoísmo, resultando na deformação corporal, símbolo do narcisismo a que a vaidade desmedida conduz.

A forma do filme é a da vaidade da protagonista que vai se tornando doentia à medida que seu desespero aumenta. Desde o primeiro momento, o filme causa estranhamento, parecendo-se mais com um sonho esquisito. Tudo é desmedido, exagerado. Traços corporais de velhice são exacerbados, também os da juventude, tudo é desproporcional. O vilão da história, por exemplo, o diretor da rede de TV, é sempre mostrado com destaque aumentado de algum aspecto físico desagradável (quando urina no banheiro, come de boca aberta, etc) a gerar uma repulsa, que é o que sente Elisabeth por ele.

À medida que a vaidade de Elisabeth vai sendo humilhada, com ela sendo obrigada a encarar o vazio e solidão que é sua vida sem sua beleza física, mais desproporcional tudo vai ficando, com o sonho esquisito se tornando um pesadelo grotesco. O movimento de procurar pela substância salvadora é, na verdade, uma tentativa de se entorpecer na sua realidade. Narcisismo é uma palavra derivada do grego narke, que significa "entorpecido", de onde também se origina a palavra “narcótico”. Quanto mais entorpecida, mais disforme sua vaidade ficava, monstruosa. O fim desse “monstro” nos devolve então à realidade de todo narcisismo: faz da pessoa um nada, desprezível, esquecida em pouco tempo.

Largue a régua

Se Demi Moore, a diretora ou o filme merecem ganhar o Oscar, só quem assistiu aos concorrentes poderia e deveria afirmar. Mas, no Brasil, como tudo vira um Fla-Flu, as indicações de Ainda Estou Aqui provavelmente farão os emocionados – que foram passar vergonha xingando o jornal Le Monde por ter feito uma crítica negativa do filme brasileiro –   tratarem os concorrentes, dentre eles A Substância e Demi Moore, como se fossem inimigos, não merecendo nada.

A quem não for contaminado pela substância ufanista, vale a pena assistir a A Substância, especialmente se for mulher, pois permite uma interessante reflexão sobre a perda da beleza física, que está no centro da crise da meia idade feminina. Crise pela qual Demi Moore passava (no pretérito, pois parece que a superou) em sua vida. Como disse em seu discurso de aceitação do Globo de Ouro: “enquanto eu estava em um momento difícil, surgiu na minha mesa um roteiro mágico, ousado, corajoso, fora da caixinha, absolutamente insano, chamado A Substância, e o universo me disse que eu ainda não havia terminado.”

Vale a pena destacar o restante do que falou: “Vou deixar vocês com uma coisa que acho que esse filme transmite para os momentos em que não achamos que somos inteligentes o suficiente, bonitas o suficiente, magras o suficiente, bem-sucedidas o suficiente ou, basicamente, apenas não o suficiente. Uma mulher me disse: ‘Apenas saiba que você nunca será suficiente, mas pode conhecer o valor do seu próprio mérito se simplesmente largar a régua de medir.’ E hoje eu celebro isso como um marco da minha integridade, do amor que me impulsiona e do presente de fazer algo que amo e ser lembrada de que eu pertenço. Muito obrigada.”

Em 45 anos de carreira, Demi Moore nunca havia ganhado um prêmio. Neste contexto, o valor de seu discurso aumenta, com uma demonstração de humildade rara entre celebridades. A humildade de alguém que encarou a realidade de sua meia idade, da perda de sua relevância, de sua beleza física, enfrentando seus fantasmas, os vazios da atenção não mais recebida, saindo mais bela do que antes.

Demi Moore disputa o Oscar de Melhor Atriz com Fernanda Torres na cerimônia prevista para 2 de marçoDemi Moore disputa o Oscar de Melhor Atriz com Fernanda Torres na cerimônia marcada para 2 de março (Foto: Divulgação Mubi)
  • A Substância
  • 2024
  • 140 minutos
  • Indicado para maiores de 18 anos
  • Disponível no Mubi

VEJA TAMBÉM:

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.