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Há personagens que transcendem as páginas dos livros e as telas de cinema, ganhando vida própria no imaginário coletivo. Dom Quixote talvez seja o melhor exemplo. Mesmo quem nunca leu a obra de Cervantes conhece seu protagonista, ao menos naquilo que ele tem de sonhador, idealista, utópico, ou seja, quixotesco, o adjetivo nascido do personagem como sinônimo dessas coisas e outras mais, como lunático e tolo.
Quixote é uma dessas raras criações que captura algo de universal na condição humana. Imprime-se na cultura não apenas de forma atemporal, mas viva, podendo ser recebido ou interpretado de formas diferentes – às vezes, até opostas – pelas gerações vindouras. E isso acontece não apenas com o que se costuma considerar “alta cultura”, mas também com o que estaria abaixo dela. Pode parecer surpreendente – até absurdo –, mas Ferris Bueller, o icônico personagem do filme Curtindo a Vida Adoidado, de John Hughes, permite ser enxergado assim.
Antes de tratar de Ferris, porém, vejamos a recepção de Dom Quixote. No seu lançamento, a obra foi, em grande parte, recebida como uma sátira aos romances de cavalaria e à sociedade espanhola do início do século XVII (os livros foram publicados em 1605 e 1615, respectivamente). Ou seja, Quixote era mais visto como um louco do que um idealista ou sonhador, que é como os séculos vindouros passaram a enxergá-lo, especialmente com os românticos do século XIX.
Quem teria razão? Ambos, são complementares. Porque realmente há loucura e sensatez no Quixote. Os demais personagens da obra que se interessavam por ele e o conheceram mais de perto se espantavam como, mesclado à sua loucura, havia uma lucidez inegável. É o caso das razões por ele alegadas para restaurar os valores da cavalaria, que teriam sido perdidos. Esses valores não são outros que as virtudes cristãs: “Portanto, oh Sancho, nossas obras não hão de sair do limite a nós posto pela religião cristã que professamos”, assim disse no capítulo 6, do segundo livro, complementado logo adiante pelo que está no capítulo 8:
“Havemos de matar nos gigantes a soberba; a inveja, na generosidade e bom peito; a ira, na sossegada compostura e na quietude do ânimo; a luxúria e a lascívia, na lealdade que guardamos àquelas que fizemos senhoras de nossos pensamentos; a preguiça, em andar por todas as partes do mundo, buscando as ocasiões que nos possam fazer e façam, sobre cristãos, famosos cavaleiros. Aqui vês, Sancho, os meios pelos quais se alcançam os extremos de louvores que traz consigo a boa fama.”
Desorientação existencial
Ainda que você não seja cristão, não há como negar a sensatez de tentar obter essas virtudes citadas. Seria isso que tornaria Quixote tão encantador e inesquecível? Sigamos esta pista. O filósofo e crítico literário húngaro György Lukács, em sua obra famosa, Teoria do Romance, sustenta que o romance seria “a epopeia de um mundo que foi abandonado por Deus”. Lukács era ateu, fosse cristão, definiria de forma inversa: o romance é a epopeia de um mundo que abandonou Deus.
Seja como for, a consequência disso é que o mundo moderno, segundo o próprio Lukács, seria caracterizado pela perda de um centro transcendental ou de uma ordem cósmica que forneça sentido e propósito à existência humana. Isso implica em uma desorientação existencial, onde o indivíduo se vê confrontado com um mundo sem significado, onde a eternidade é substituída pelo tempo e o mundo interior da alma não encontraria mais lugar na realidade exterior.
Dom Quixote foi o primeiro desses romances. O primeiro a retratar o indivíduo, portanto, distante do transcendente, mas cujo personagem decide buscá-lo, restaurar essa ordem, recuperar o sentido e propósito da existência. É aqui que me parece residir o “segredo” da perenidade de Quixote no mundo moderno. Não é preciso concordar com o cavaleiro em relação ao que seria essa ordem, aceitar os valores da cavalaria e as virtudes cristãs, para admirar sua coragem de tentar restaurar ou criar um sentido maior para sua vida que parece ausente ou perdido.
O que encanta os leitores, para além do reconhecimento dessa “falta” de algo essencial na vida, é a coragem de tentar encontrar esse algo e, só por tentar, já ter começado a preencher a vida com ele. Sua valentia já é, em si, uma virtude restaurada. Ou seja, precisamos que existam Quixotes, ao menos para manter a esperança de que a vida pode ser mais e melhor do que é ou tem sido.
Um não ao vazio da vida adulta
Outro personagem que serve de exemplo disso, desse preencher algo que falta por ser como se é, é o citado Ferris Bueller. Mas aqui não estamos falando de virtudes, muito menos cristãs. É até o contrário. Ferris é um adolescente que quer aproveitar o dia se divertindo, sem pensar em responsabilidades e no futuro. Parece ser um representante do carpe diem, mas apenas em um sentido reduzido, no sentido de “curtir” o dia, quando o sentido original transcende o prazer e o viver despreocupado, implicando em aproveitar o máximo do presente, não deixando para amanhã o que pode ser feito hoje.
Ferris consegue viver despreocupado, buscando apenas o prazer. Embora talvez não seja apenas uma busca por diversão pela diversão, mas também uma fuga – consciente ou não – das armadilhas da rotina, das expectativas alheias, da pressão por um futuro pré-definido que, para ele, parece desprovido de sentido imediato. Ele não busca restaurar um passado glorioso, mas sim reinventar um presente que já é percebido como um futuro desagradável sem os interlúdios da diversão. É a percepção da vida adulta como vazia, o vazio da ausência de espontaneidade, da vida programada, da qual ele se rebela ao máximo desde já, não com bravura, mas com astúcia e charme.

É o que muitos admiram nele, até invejam: conseguir viver assim, sem culpa, nem angústia. Durante todo o filme há um movimento da própria cidade para “salvar Ferris”. Para além da ironia de todos estarem sendo enganados pelo piá que finge estar à beira da morte, há também aí um símbolo poderoso de algo maior, de algo comungado não apenas pelos demais personagens, mas por muitos espectadores: um desejo, uma “sede” de uma vida boa, mas sem deveres. Quem dera viver a vida como Ferris, apenas aproveitando, sem se preocupar com outras coisas. Ou seja, seria preciso salvá-lo para que possamos acreditar ser possível viver assim.
Assim, tanto Dom Quixote quanto Ferris Bueller se tornam símbolos complementares de nossa condição moderna: um representa a nostalgia heroica de quem tenta restaurar o sentido perdido por meio da virtude e do ideal, o outro encarna o sonho escapista de quem deseja simplesmente ignorar essa falta, vivendo na superfície prazerosa do presente. Ambos tentam preencher, à sua maneira, o mesmo vazio existencial: Quixote pela encarnação do transcendente, Ferris pela negação dessa necessidade. Será que algum deles foi bem-sucedido nisso?
Ânsia de encontrar o sagrado
É tentador apostar em Dom Quixote, afinal Ferris apenas foge do problema, adia, não o resolve. Mas a leitura da obra de Cervantes deixa um sabor amargo, desconfortável, pessimista até. No fim, Cervantes parece desistir do quixotismo de seu personagem, exorcizando-o. Essa renúncia final, onde o cavaleiro regressa à sanidade para morrer, é um dos pontos mais debatidos da obra, vista por alguns como a consagração do trágico no idealismo quixotesco, e por outros como um questionamento do próprio valor da loucura poética.
Por isso Miguel de Unamuno, em seu Vida de Dom Quixote e Sancho Pança, vai contra o próprio Cervantes, defendendo Quixote de seu criador, chegando a conclamar os quixotistas a “quixotescamente derrotar os cervantistas”. Ao enviar sua defesa de Quixote a um amigo, porém, recebeu em resposta:
“Tudo isso que me dizer está muito bem, está bem, não está mal; mas não te parece que, em vez de ir buscar o sepulcro de Dom Quixote e resgatá-lo de bacharéis, padres, barbeiros, cônegos e duques, deveríamos ir buscar o sepulcro de Deus e resgatá-lo de crente e incrédulos, de ateus e deístas, que o ocupam e que esperam ali, dando brados de supremo desespero, derretendo o coração em lágrimas, que Deus ressuscite e nos salve do nada?”
O amigo de Unamuno tem um bom ponto e desconfio que Dom Quixote concordaria com ele, tanto na fase da loucura como quando curado dela. No fim das contas, a sua crise existencial, a do Ferris e, ousaria dizer, a nossa, reside na ânsia de encontrar o sagrado, o transcendente, o inefável em um mundo que teima em nos esvaziar dEle.





