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Lojas para alugar viraram cena comum em Nova Iorque: | Fotos: Guido Orgis/Gazeta do Povo
Lojas para alugar viraram cena comum em Nova Iorque:| Foto: Fotos: Guido Orgis/Gazeta do Povo
  • ... a recessão mudou a paisagem da cidade ...
  • ... mas não abalou a crença na sua recuperação

Nova Iorque - Os nova-iorquinos dizem que sua cidade não é mais a mesma desde o último verão, quando o mundo financeiro ruiu e ameaçou levar para o buraco a maior economia do mundo. Os restaurantes andam mais vazios, o trânsito melhorou, há várias lojas fechadas nas principais ruas comerciais e a infraestrutura precisa de uma boa reforma. Mas é bom desconfiar de frases como "nunca vi Nova Iorque desse jeito". Seus moradores, assim como o resto dos Estados Unidos, estão aprendendo a viver fora de uma bolha, e isso já aconteceu antes.

Após duas semanas na cidade, ouvindo e falando sobre crise durante um seminário promovido pela Universidade de Columbia nos primeiros 15 dias de junho, posso dizer que a vida fora da bolha não é uma catástrofe. Pode ter chegado perto disso nos momentos de maior estresse após a falência do banco Lehman Brothers, em setembro de 2008, quando economistas ainda avaliavam o risco de o país entrar em uma depressão como a dos anos 30. A recessão, que neste ano deve fazer o PIB americano cair 3%, é claro, tem efeitos graves e desiguais. Dentro de Nova Iorque, o cenário é mais desalentador nas áreas de menor renda, como o Harlem. Pequenas cidades que perderam fábricas (de montadoras, por exemplo) são as que mais sofrem.

As discussões sobre economia nos EUA são filtradas por um tipo de otimismo muito particular. Após mais de 200 anos de vida independente e uma tradição de liberalismo econômico, os norte-americanos conhecem bem as oscilações do sistema capitalista. Esta crise é só mais uma delas – grave, daquelas que dão muito trabalho. A dúvida não é se a economia voltará a crescer, mas quando e quanto. Os mais céticos dizem que os EUA passarão por anos de crescimento abaixo do potencial de 3% ao ano. Para os mais otimistas, como uma analista gabaritada de um dos maiores bancos americanos que eu e meus colegas de seminário encontramos em um almoço, o ciclo de expansão já está começando e será razoavelmente forte.

Parece que já se consolidou uma versão mais ou menos consensual para explicar a crise. Basicamente, houve uma bolha imobiliária, alimentada por crédito barato sustentado por instrumentos financeiros que, programados para eliminar o risco nas operações, fizeram o contrário. Os modelos matemáticos não previam que a bolha, como é regra na história do capitalismo, um dia estouraria. No fim, eles espalharam um risco maior do que o imaginado, o que contaminou os balanços de bancos, seguradoras e fundos de investimentos, e várias outras falhas estão associadas a esse processo.

Nova era

O resultado esperado desse consenso é que haja uma nova regulação, pelo menos nos EUA, para lidar com esses problemas. As inovações da indústria financeira, como a famigerada securitização (conversão de financiamentos em títulos e derivativos), porém, continuarão. Como disse um analista do setor imobiliário, a recuperação da economia americana após a recessão de 2001-2002 não teria ocorrido sem esses instrumentos. Em um mercado de crédito fechado, eles abriram o caminho para o boom imobiliário. Seu uso, porém, foi longe demais. Em um painel no dia 24 de maio, o Nobel de economia Joseph Stiglitz tocou em alguns dos pontos que a nova regulação deveria abordar: estrutura de incentivos que evite risco demasiado, melhor observação na formação de bolhas e maior controle sobre a contabilidade dos bancos.

Na semana passada, o governo de Barack Obama anunciou os primeiros traços do que será a nova regulação do sistema financeiro. O Fed, banco central dos EUA, terá mais poder para regular produtos financeiros. Haverá uma concentração de poder regulatório, hoje disperso entre dezenas de agências federais e estaduais. Apesar de não tocar no tema da recompensa a executivos, o plano deve criar uma forma de reduzir o risco sistêmico ao forçar que as instituições fiquem com uma parte dos ativos financeiros que criarem – assim, terão mais interesse em manter a qualidade dos produtos com os quais trabalham.

Jogo de letras

É comum que economistas tentem adivinhar o formato da atual recessão americana. Para isso, eles usam letras. Os otimistas usam o V, para mostrar uma recessão curta, seguida de recuperação rápida. Para outros, o formato será de W, com um momento de recuperação, seguido de uma segunda queda e, aí sim, uma recuperação robusta. Outros usam o U para descrever uma recessão longa. Os mais céticos usam o L, uma recessão e ponto final – algo que o Japão experimentou dos anos 90 pra cá.

O L é o menos popular. Os favoráveis ao U argumentam que o norte-americano voltou a poupar parte de sua renda – antes da crise, o indicador de poupança chegou perto de zero e agora caminha para 5%. Se a poupança subir para, digamos, 10%, o que levaria mais alguns trimestres, o consumo continuará deprimido. Recuperação, só depois disso. Mas é possível que a poupança estabilize antes e que, com a confiança do consumidor restaurada, a economia volte a crescer bem já no segundo semestre deste ano, como dizem os defensores do V. É aí que entram os maiores riscos: se a recuperação for rápida, haverá pressão inflacionária. Afinal, o Fed jogou trilhões de dólares no sistema financeiro (seu balanço passou de US$ 800 bilhões para quase US$ 3 trilhões em meio ano). Esse dinheiro terá de ser recolhido e, se a operação não for bem coordenada, pode haver um aumento de juros que, no limite, levaria a uma nova corrida para liquidar estoques e cortar produção. "E não podemos descartar uma nova crise bancária após o início da recuperação com um ou dois grandes bancos ainda com problemas", afirma David Beim, professor da Columbia Business School.

Erros do passado

Mas, afinal, por que os EUA podem estar tão confiantes de que não cairão na armadilha de estagnação do Japão? Historicamente, o mercado financeiro parece aprender com seus erros. "Hoje você nem precisa regular alguns tipos de derivativos porque simplesmente ninguém os compraria", exemplifica Richard Clarida, professor de economia da Universidade de Columbia. E o sistema americano é mais aberto a esse aprendizado – é bom lembrar que os bancos japoneses continuaram a fazer empréstimos a empresas quebradas mesmo após o início da crise dos anos 90. A aposta é que a limpeza nos bancos será rápida. Dez dos 19 bancos que receberam capital do Fed já devolveram o dinheiro e há uma pressão grande para que o governo desmonte logo as instituições com problemas, em especial o Citigroup.

Um sistema limpo e melhor regulado estaria pronto para financiar o país com as melhores universidades do mundo, que tem tradição no processo de inovação tecnológica e que está ainda longe de apresentar problemas demográficos, apesar do clamor conservador contra a imigração. Com a possibilidade de aperfeiçoar um sistema de ensino básico que deixa muito a desejar na comparação com outras nações desenvolvidas e a promessa de desenvolver um seguro universal de saúde, o governo dos EUA tem ainda de onde extrair potencial de crescimento. Apesar de todas as dificuldades que o meio político, amplamente influenciado por lobbies fortíssimos, tem para aprovar as reformas necessárias para lidar com a crise, os americanos têm boas razões para acreditar que esta não é uma crise terminal.

A viagem e a participação no seminário em Nova Iorque fizeram parte do Citi Journalistic Excellence Award, prêmio recebido pelo jornalista Guido Orgis em março.

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