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A política econômica do presidente americano Donald Trump terá reflexos também nas eleições brasileiras de 2026. As consequências da guerra comercial que ele deflagrou podem turbinar o discurso político nos dois lados do espectro ideológico.
A aposta de Trump – de reindustrializar os Estados Unidos e conter o déficit comercial por meio de tarifas de importação – é de alto risco para a própria economia norte-americana e, consequentemente, para o mundo.
Caso funcione ao menos para os EUA, como prega o republicano, a política econômica de Trump pode servir de trunfo para a direita aqui no Brasil. Por outro lado, um eventual naufrágio será explorado pela esquerda.
Se o baque econômico por aqui for muito forte, o efeito será ambíguo. Do ponto de vista eleitoral, Lula pode ser prejudicado pela piora da economia sob o seu comando. Mas, ao mesmo tempo, tentará culpar Trump e as políticas da direita por qualquer revés no PIB brasileiro.
Economistas e o mercado financeiro revisam seus cálculos e projetam desaceleração na economia global. Seria decorrência tanto de uma eventual freada nos EUA, pelo aumento da inflação e a manutenção de juros elevados, quanto de uma redução do comércio mundial em razão das tarifas e retaliações de outros países.
O banco JP Morgan aumentou para 60% a probabilidade de recessão após o anúncio das tarifas recíprocas. O Fundo Monetário Internacional (FMI) reduziu sua projeção para o crescimento global em 2025 de 3,3% para 2,8%. Para 2026, baixou a estimativa de 3,3% para 3%.
Para a economia brasileira, o Fundo revisou as previsões de 2,2% para 2%, tanto em 2025 quanto em 2026. Embora o Brasil tenha chances de negociar as tarifas e ter benefício com eventual abertura de novos mercados, em especial para o agronegócio, setores industriais tendem a ser prejudicados, como os de aço e alumínio.
Para o governo, o temor é que as medidas de Trump causem grande prejuízo à economia, o que aumentaria o desgaste do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
De outro lado, entre os setores liberais e conservadores, o receio é de que um desarranjo econômico respingue nos candidatos alinhados ao republicano.
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que a proximidade dos setores ligados a Trump será uma peça importante a ser explorada no tabuleiro político.
“Sem dúvida, os Estados Unidos e Trump terão alguma importância [nas eleições de 2026]”, afirma o filósofo e analista político Luiz Felipe Pondé. “Muitos falam que não se sabe qual teria sido o resultado [das eleições brasileiras] de 2022 se o Trump tivesse levado a eleição de 2020 nos Estados Unidos.”
Direita pode ser a mais prejudicada
Pondé acredita que, se a turbulência promovida pelo presidente americano continuar, a direita tende a ser mais prejudicada.
“O comportamento errático de Trump me parece que pode ser usado muito bem pelo PT, pela imprensa – na sua maioria de viés petista, como a gente sabe –, contra a direita em 2026”, diz Pondé. “Acho que é um problema. Se ele [Trump] continuar do jeito que está, agressivo, às vezes parecendo que não sabe muito bem o que faz, isso pode desorientar a direita no Brasil, que já está fragmentada há algum tempo.”
As hostes direitistas admitem a preocupação. O jornalista e empresário Paulo Figueiredo, referência de uma direita majoritariamente bolsonarista – com mais de 400 mil seguidores no Youtube e, segundo ele, mais de 5 milhões em contas bloqueadas por decisão judicial –, ressalta o alto risco da estratégia econômica trumpista.
"Se a economia não reagir rapidamente e o suficiente para ficar, de fato, pujante no ano que vem, como nunca aconteceu, ou pior do que isso, se houver algum crash econômico... Economia é, eu brinco sempre, comparando com a medicina, às vezes você tem um efeito colateral que leva o paciente ao colapso. E se isso acontecer, nós estamos ferrados em 2026", afirmou em seu programa semanal. "É uma aposta grande, pensada e ousada. E uma aposta difícil".
Protecionismo de Trump não traduz visão global
A enxurrada de críticas que a estratégia do atual morador da Casa Branca recebeu da imprensa mundial e dos analistas econômicos – traduzida pela turbulência e volatilidade do mercado financeiro global – revelaram a incongruência da política de Trump com os valores do livre mercado.
A "Trumponomics" expôs uma visão protecionista e unilateral que pode provocar reação em cadeia, com retaliação de outros países – a da China foi a mais evidente. Se prevalecerem, as tarifas podem acabar protegendo setores ineficientes da economia norte-americana, o que contraria fundamentos das ideias liberais e conservadoras.
Para o cientista político Fernando Schuler, professor do Insper, isso cria constrangimento para parte da direita. "Beira o absurdo setores que sempre defenderam o liberalismo, abertura econômica, o comércio global, etc, sempre falaram em Adam Smith, Friedrich von Hayek e Milton Friedman, agora defenderem o maior choque tarifário da história do capitalismo", afirma o professor, citando ícones do liberalismo.
Segundo ele, mesmo que Trump esteja "blefando" e usando as tarifas como tática de negociação, a mensagem é "péssima". "Não tem visão global nenhuma", diz. "A abertura econômica é boa para todo mundo no longo prazo, gera especialização e vantagens competitivas. [Ronald] Reagan [ex-presidente dos EUA e ícone dos republicanos] sabia disso. Trump não acredita."
O discurso de Trump, no entanto, ainda tem respaldo entre seus eleitores. Uma pesquisa encomendada pela revista The Economist à YouGov, realizada entre os dias 5 e 8 de abril, revelou que 85% dos que votaram em Trump em 2024 têm visão favorável do republicano. O apoio é consolidado pelo Maga (o movimento Make America Great Again), composto massivamente pelo eleitorado do "Cinturão da Ferrugem", regiões que perderam fábricas,indústrias e empregos por conta da globalização.
O mesmo levantamento, no entanto, aponta queda na aprovação geral de Trump entre a totalidade dos americanos, com 51% dos eleitores desaprovando seu desempenho.
Tratamento a aliados favorece críticas
A perspectiva explicitada de Trump colocar a "América em primeiro lugar" (America first) também dificulta sua utilização como "cabo eleitoral" da direita brasileira. Setores ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) costumam considerar que o Brasil teria vantagens com a eleição de um líder "amigo" de Trump.
“Até agora, ele [Trump] só criou barreiras para os países e até para os seus aliados”, afirma Daniela Campello, professora de Ciência Política e Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV).
“Um candidato que usa boné ‘Make America Great Again’ pode ficar numa ‘saia justa’ porque o Trump não está oferecendo nada. A gente viu o que aconteceu no Canadá [onde a população boicotou os produtos americanos em resposta às tarifas]. Isso pode ser um problema no Brasil se, de fato, eles continuarem com essa política muito agressiva.”
Por outro lado, a professora admite que, se a "Trumponomics" tiver impacto muito negativo na economia brasileira, o resultado poderá ser desfavorável ao governo Lula.
“A economia tem efeito no voto, sempre”, diz. “Quando vai mal, é ruim para quem está no governo porque as pessoas não sabem distinguir uma coisa da outra. Vai depender da capacidade de Lula para mostrar o que está acontecendo, mas a gente não sabe qual retórica sairá vencedora.”
Para Pondé, a utilização das medidas de Trump por parte da esquerda para justificar a piora econômica é inevitável.
“Esse discurso de que 'a culpa é do Trump' já está aí", diz o filósofo. "Seguramente já está sendo preparado nas universidades, nas redações de jornais e televisão. E Lula é um profissional em terceirizar a responsabilidade. Ele pode transferir a culpa [pelo dessaranjo econômico] do [Roberto] Campos Neto [ex-presidente do Banco Central que Lula criticava por manter altas taxas de juros] para o Trump."
A dúvida é como isso será percebido pela população. Ou seja, até que ponto a narrativa vai convencer o eleitorado. "Seria mais fácil Lula pôr a culpa nos ricos do Brasil, nas pessoas que são insensíveis ao sofrimento dos mais pobres, como sempre fez", observa. "Vale lembrar que o Lula e o PT promoveram a polarização, do 'nós contra eles', muito antes do bolsonarismo."
Direita pode se apoiar em iniciativas de Trump para a reforma do Estado
Tarifas à parte, os candidatos vinculados à direita terão espaço para explorar outros pontos da agenda de Trump na próximas eleições. Principalmente as inicativas ligadas à eficiência governamental e asuteridade fiscal, como a criação do Departamento de Eficiência Governamental (Doge), chefiado pelo bilionário Elon Musk.
Também são bandeiras positivas a redução de impostos para o contribuinte americano e a desregulação econômica, que vem sendo incentivada no mundo todo. O maior exemplo é o do presidente argentino, Javier Milei, outra referência da direita brasilera.
Logo que assumiu, Milei reduziu de 18 para 8 o número de ministérios, desativou órgãos considerados eficientes e eliminou 34 mil cargos públicos ligados à Casa Rosada. As consequências foram sentidas no controle da inflação, que caiu de 25% para 2,7% ao mês no primeiro ano de governo e no superávit fiscal anual, alcançado em 2024 pela primeira vez depois de 123 anos.
“A sociedade, de forma majoritária, vê este enxugamento de maneira positiva, o que joga a favor de Trump e favorece a direita", diz Fernando Schuler. "Há um desgaste nas corporações, sindicatos, com setores ideológicos que de alguma maneira capturaram o Estado americano. Além disso, os países precisam fazer reformas, modernizar a regulação, reduzir burocracia, aumentar produtividade econômica para ganhar competitividade, ou vão perder a guerra comercial.”
Ele destaca outro ponto a ser explorado pelos direitistas na referência a Trump: a agenda “antiwoke”, em oposição ao movimento associado a questões sociais, políticas, e identitárias, como igualdade racial, feminismo, ativismo LGBTQIA+. As pautas woke têm enfrentado desgastes no mundo todo pelo estímulo à distinção e à criação de direitos diferenciados a partir de uma lógica de grupos de pressão minoritários.
“Nada contra políticas inclusivas, no sentido de políticas sociais, políticas de bem-estar social, boa educação, mas a agenda woke cansou", acredita Schuler. "As pessoas estão querendo retomar políticas universalistas, onde atodos sejam tratados com igualdade, onde o mérito seja importante. Isso aconteceu nas empresas e na sociedade de maneira geral, mesmo fora da direita.”
Confusão gera divisões e estimula "direita moderada"
Em meio às incertezas e à polarização ainda vigente no país, a confusão gerada por Trump torna o cenário ainda mais desafiador para a direita em 2026.
O espectro mais identificado com Trump, representado pelo ex-presidente Bolsonaro, pode ser o mais prejudicado. Isso contribuiria para consolidar a divisão da direita, que já vem se fragmentando desde a decretação da inegibilidade de Bolsonaro pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em junho de 2023.
Atualmente, pelo menos quatro candidatos disputam o apoio do ex-presidente e o voto do eleitor liberal ou conservador: os governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), do Paraná, Ratinho Júnior (PSD), de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo) e de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil).
O "furação" Trump parece favorecer a ascensão de uma direita "mais moderada", menos identificada com o republicano. Fernando Schuler diz que existe hoje no país uma direita “carnívora”, representada por Bolsonaro e familiares, e outra “vegetariana”, que reúne figuras que disputam o apoio do ex-presidente.
“Há uma forte probabilidade que uma delas seja o competidor final da direita em 2026, com maiores chances para Tarcísio,” afirma o cientista político, que não acredita na reversão da inegibilidade do ex-presidente. “Essa direita moderada não se associa diretamente à figura do Trump e pode conquistar o eleitor médio, de centro, que é quem decide a eleição no Brasil.”
Pondé considera que um candidato moderado seria facilmente abraçado pela direita “não bolsonarista” – que muitos chamam de “direita republicana” – e que tem tido um viés crítico com relação às medidas de Trump.
"O problema é a viabilização desse nome dentro dos partidos à direita ou ao centro", diz. "Acho difícil enxergar uma candidatura dessa decolando, porque em termos de voto, grande parte da direita ainda está submetida ao bolsonarismo, espécie de 'feitiço' que cresceu e tomou conta como se fosse a única forma possível de fazer frente ao PT.”
Para ele, a insistência do ex-presidente em ser elegível tem dificultado a organização de possíveis candidaturas. “Ele ainda é cabo eleitoral importante”, diz Pondé. “Então, os possíveis candidatos têm que ficar abaixando a cabeça, para conseguir arregimentar o grande número de eleitores que continuam seguindo Bolsonaro. Tenho a impressão que o mais definitivo para a eleição de 2026 do ponto de vista da direita no Brasil é o Bolsonaro ‘largar o osso’.”




