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O Brasil não está fazendo a "lição de casa" na economia. Com isso, fica mais vulnerável a eventos externos, como as tarifas impostas pelo presidente norte-americano Donald Trump. Desde o início do mandato, em 20 de janeiro, o republicano vem ampliando as barreiras comerciais – e nesta semana renovou a ameaça de medidas contra países como o Brasil.
Os problemas nas contas públicas brasileiras ajudam a tornar o cenário interno mais imprevisível e incerto diante de uma complexidade maior no exterior.
As contas públicas seguem no vermelho, enquanto o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) insiste em manter a economia aquecida, mesmo com a inflação alta. O Comitê de Política Monetária (Copom) já indicou que novas elevações na taxa básica de juros (Selic) são inevitáveis.
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A instabilidade econômica se acentua em um momento de baixa confiança empresarial. Segundo o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), o índice de confiança dos empresários atingiu em janeiro o seu menor nível desde maio. Há quatro meses está em queda.
De acordo com João Kepler, CEO da Equity Fund Group, a política protecionista de Trump pode gerar uma valorização do dólar, prejudicando a competitividade das exportações brasileiras e desestabilizando o fluxo de capitais internacionais.
“O aumento das taxas de juros nos EUA atrai investidores para os títulos públicos americanos, valorizando o dólar frente a outras moedas e criando um cenário de instabilidade para economias emergentes como a brasileira”, explica o executivo.
Tarifas de Trump chegam com economia brasileira sobreaquecida
Um dos termômetros de que o Brasil não está cumprindo a “lição de casa” é a inflação anualizada de serviços, que atingiu 5,54% em janeiro, o maior valor em 12 meses. Segundo Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, o governo deveria priorizar o controle da inflação de serviços e não a de alimentos, que não é facilmente regulada pela elevação de juros.
Entre as medidas discutidas para conter a alta dos preços está a taxação de exportações de alimentos, uma estratégia que já fracassou na Argentina e causou um racha do governo Lula.
Enquanto isso, iniciativas para estimular o consumo – como a liberação de R$ 12 bilhões do FGTS, equivalente a 0,1% do PIB – continuam sendo adotadas, intensificando o sobreaquecimento da economia. Os recursos começam a ser liberados nesta quinta (6).
Ao que tudo indica, a economia brasileira emendou quatro anos seguidos de crescimento do PIB próximo ou superior a 3%. Dados preliminares mostram um avanço de 3,5% em 2024, segundo o Monitor do PIB da FGV Ibre, enquanto o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br) apontou alta de 3,8%. Os dados oficiais serão divulgados nesta sexta (7) pelo IBGE.
Contas no vermelho refletem a "lição de casa" não feita pelo governo
O descumprimento da "lição de casa" pelo governo Lula tem a ver com o descontrole das contas públicas. Desde o início do mandato, o governo injeta dinheiro na economia, o que impulsiona o consumo e beneficia comércio e serviços, mas também provoca alta nos preços, já que as empresas não conseguem atender à demanda crescente de forma imediata. A consequência é a necessidade de alta na Selic.
O Brasil encerrou 2024 com um déficit primário (despesas públicas, excluídas as da dívida pública, menos a arrecadação) de 0,37% do PIB, puxado pelo governo federal, que teve um saldo negativo de 0,4%.
Carlos Eduardo Oliveira Jr., membro do Conselho Regional de Economia de São Paulo (Corecon-SP), alerta que a crise fiscal brasileira amplifica os impactos da deterioração do cenário global.
“Com limitações orçamentárias, o governo pode ter dificuldades em implementar políticas contracíclicas, o que pode resultar em cortes de investimentos públicos, redução de programas sociais e aumento do desemprego”, afirma.
Apesar da necessidade de medidas estruturais, o atual governo tem evitado reformas profundas. É uma situação que, na melhor das hipóteses, deve ser resolvida só depois de 2027.
“As medidas fiscais necessárias para reverter a maior percepção de risco sobre o tema não deverão ser tomadas no governo atual, pois envolveriam temas politicamente sensíveis ao discurso e à popularidade do governo", diz Sílvio Campos Neto, da Tendências Consultoria.
Parte da economia ficará em "compasso de espera", avalia Vale, da MB Associados, afetando o crescimento da atividade. "O governo tenta ajustar apenas pelo lado da receita", destaca.
Sem reforma estrutural, governo precisará recorrer a medidas paliativas
Mesmo sem reformas estruturais, economistas sugerem que o governo adote medidas paliativas para conter o agravamento da crise.
“A atual equipe econômica deve redobrar os esforços para transmitir uma mensagem de controle fiscal, ao menos evitando qualquer medida que possa piorar adicionalmente o cenário. Ao mesmo tempo, o Banco Central deve manter sua postura firme e técnica na condução da política monetária", enfatiza Campos Neto.
A retomada do teto de gastos poderia viabilizar uma redução sustentável das taxas de juros. Economistas do Itaú apontam que o retorno da Selic a um dígito, patamar em que esteve até fevereiro de 2022, depende da implementação desse regime fiscal. Outros impactos poderiam vir da estabilização das contas públicas e recuperação da confiança dos investidores.
O teto de gastos, implementado em 2016, durante o mandato de Michel Temer (MDB), foi substituído pelo arcabouço fiscal no governo Lula. O presidente, que chamou a regra do teto de "estúpida" em seu discurso de posse, flexibilizou o controle das despesas públicas.
Em vez de impedir que o gasto federal avance além da inflação, como fazia o teto, o novo arcabouço criou um "piso de despesas", determinando que elas tenham aumento real entre 0,6% e 2,5% ao ano.
Economistas afirmam que, embora a questão fiscal seja crucial, ela é apenas a "ponta do iceberg" diante dos desafios do Brasil em um cenário de instabilidade global e na necessidade de fortalecer sua capacidade de reação.
Além disso, estratégias de longo prazo, como a diversificação dos mercados de exportação, o fortalecimento da competitividade industrial e o investimento em educação e inovação, são cruciais para aumentar a resiliência da economia brasileira diante de choques externos. “Sem essas medidas, o Brasil continuará vulnerável às oscilações do mercado global, com pouca capacidade de reação”, conclui Oliveira Jr., do Corecon-SP.
Tarifas de Trump já afetam produtos brasileiros
Alguns produtos brasileiros já foram diretamente afetados pelas tarifas de Trump. O aço sofreu sobretaxação, mesmo sendo um dos principais produtos exportados pelo Brasil para os Estados Unidos. Outro item na mira de Trump é o etanol.
“O Brasil impõe uma tarifa de 18% sobre o etanol americano, enquanto os EUA aplicam apenas 2,5% ao produto brasileiro. Em 2024, os Estados Unidos importaram mais de US$ 200 milhões em etanol do Brasil, mas exportaram apenas US$ 52 milhões para o mercado brasileiro”, afirmou o republicano.
Mais produtos podem ser incluídos na lista. Nesta terça (4), o Brasil voltou a ser alvo de Trump, que, em discurso no Congresso, mencionou o país entre os destinos de sua nova rodada de tarifas.
Além do Brasil, outros países como União Europeia, Índia, Coreia do Sul, México e Canadá também foram citados como alvos de tarifas “recíprocas”, com aplicação prevista para 2 de abril. “Esse sistema não é justo para os EUA, e nunca foi. Se nos taxarem, vamos taxá-los, é simples”, disse o presidente dos EUA.
Segundo o Laboratório do Orçamento da Universidade Yale, a média das tarifas de importação dos Estados Unidos está em seu mais alto nível desde 1943.







