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"Não lhe resta mais nenhum senso de decência?" Essa é a questão que Joseph Welch [ex-chefe do conselho do Exército dos EUA] teria perguntado a Joseph McCarthy [ex-senador republicano dos anos 50 famoso por acusar membros do governo americano de serem comunistas], quando o demagogo anticomunista tentou arruinar ainda outro cidadão inocente. E, nos dias atuais, essa é a questão que eu me vejo querendo perguntar a Eric Cantor, o líder da maioria da Câmara, que se esforçou mais do que qualquer outro para fazer com que chantagem política – utilizando americanos inocentes como reféns – se tornasse o procedimento de operação padrão para o Partido Republicano.

Algumas semanas atrás, Cantor era o sujeito menos flexível no confronto sobre o teto do déficit: ele estava disposto a pôr em perigo a credibilidade financeira da América, pondo toda nossa economia em risco, para extrair concessões orçamentárias do presidente Obama. Agora, ele está fazendo isso de novo, dessa vez com o auxílio a desastres, chegando às manchetes ao insistir que qualquer auxílio federal às vítimas do furacão Irene deva ser contrabalanceado por cortes em outros gastos.

Os críticos de Cantor foram rápidos ao acusá-lo de hipocrisia, e com bons motivos. Afinal de contas, ele e seus colegas republicanos não demonstraram nenhum interesse comparável em pagar pelas enormes iniciativas sem fundos da administração Bush. Eles, em particular, não fizeram nada para contrabalancear os gastos da guerra do Iraque, já contabilizando US$ 800 bilhões.

E acontece que, em 2004, quando a Virgínia, seu estado natal, foi atingida pela tempestade tropical Gaston, Cantor votou contra uma proposta que teria exigido a mesma regra de pagamento que ele agora defende.

Mas a hipocrisia é um problema secundário aqui. O problema primário deveria ser o niilismo extraordinário agora demonstrado pelo Cantor e seus colegas – sua disposição para ostentar todas as convenções costumeiras de jogo limpo e, bem, decência, com o fim de conseguirem o que querem.

Não faz muito tempo que um partido político, procurando mudar a política dos EUA, tentou realizar esse objetivo construindo uma base de apoio popular para suas ideias, e, depois, implementando-as por meio da legislação.

Mas o Partido Republicano de hoje decidiu atropelar tudo isso e seguir o caminho mais rápido. Esqueça a obtenção de votos para a aprovação de legislação; ele recebe o que quer ameaçando ferir a América se suas exigências não forem atendidas. Foi isso que aconteceu com a briga pelo teto do déficit, e agora é isso que está acontecendo com o auxílio ao desastre. Com efeito, Cantor e seus aliados estão ameaçando tomar como reféns as vítimas do furacão, usando o sofrimento delas como uma moeda de troca.

É claro, Cantor quer que todos acreditem que ele está apenas tentando ser fiscalmente responsável. Mas isso não passa de fachada.

Por acaso o auxílio a desastres, como questão de finanças públicas, deve ser contrabalanceado por cortes imediatos em outras despesas? Não. O princípio tradicional, apoiado por economistas a torto e a direito, é que surtos temporários de gastos – que geralmente surgem quando há uma guerra a ser travada, mas que também podem surgir de outras causas, inclusive crises financeiras e desastres naturais – são um bom motivo para se contrair déficits orçamentários temporários. Em vez de se impor cortes bruscos em outros gastos ou aumentar os impostos bruscamente, os governos podem e devem espalhar o fardo ao longo do tempo, emprestando agora e depois compensando gradualmente via uma combinação de gastos mais baixos e impostos mais altos.

Mas, por acaso, o governo dos EUA pode emprestar dinheiro para o auxílio ao desastre? Ele não está falido? Sim, pode, e não, não está. A América tem um problema de déficit a longo prazo, que deve ser atendido com medidas orçamentárias a longo prazo. Mas não está tendo nenhum problema em fazer empréstimos para pagar por gastos atuais. Além disso, pode fazer empréstimos a taxas de juros extremamente baixas. Nota­­vel­­mente, agora mesmo a taxa de juros das obrigações de referência de dez anos do governo americano estão apenas levemente acima da metade do que eram em 2004, quando Cantor achou não ser necessário pagar por auxílio ao desastre.

Então, a declaração de que a responsabilidade fiscal exige cortes de gastos imediatos para contrabalancear o custo do auxílio a desastres é simplesmente errôneo, tanto na teoria como na prática. Agora, Cantor pode ter de acabar recuando nessa, talvez porque vários dos estados mais atingidos têm governadores republicanos, que querem e precisam de ajuda rapidamente, sem maiores repercussões. Mas isso não irá impor um fim no problema maior: o que acontecerá à América agora que pessoas como Cantor estão dando as cartas em um de seus dois maiores partidos políticos?

E, sim, eu disse um de nossos dois partidos. Há muitas coisas ruins a serem ditas sobre os democratas, que têm lá sua cota de cínicos e carreiristas. Pode até mesmo haver democratas no Congresso tão dispostos quanto Cantor a darem avanço a seus objetivos através de sabotagem e chantagem (embora eu não consiga pensar em nenhum no momento). Mas, se existem, não estão em posições importantes de liderança. Cantor está.

Tradução:Adriano Scandolara

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