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Reciprocidade

Com atraso, governo Lula tenta diálogo para escapar das tarifas de Trump

Com atraso, governo Lula tenta diálogo para escapar das tarifas de Trump
O vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Geraldo Alckmin, foi destacado por Lula para negociar com EUA e tentar escapar das tarifas de Trump. (Foto: André Borges/EFE)

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O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está atrasado nas negociações sobre as tarifas comerciais com os Estados Unidos. Representantes do setor produtivo reclamam da “letargia” e “falta de coordenação” das esferas institucionais para um acordo diante dos anúncios das taxações presidente Donald Trump, que têm sacudido o comércio e os mercados mundiais. Por outro lado, especialistas destacam a necessidade de entendimento.

Somente seis semanas após a posse do republicano o governo participou de uma primeira reunião sobre o tema com os norte-americanos. Nesta quinta-feira (6), o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Geraldo Alckmin, iniciou tratativas com o secretário de Comércio dos Estados Unidos, Howard Lutnick, para o comércio bilateral diante das “tarifas recíprocas”, que deverão ser cobradas pelos EUA a partir de 2 abril.

Em discurso ao Congresso americano, Trump citou explicitamente o Brasil ao comentar a nova política tarifária. “Outros países usaram tarifas contra nós por décadas, e agora é a nossa vez de começar a usá-las contra eles”, disse. “União Europeia, China, Brasil, Índia, México e Canadá e diversas outras nações cobram tarifas tremendamente mais altas do que cobramos deles.”

A declaração escancarou a necessidade do diálogo, embora a reunião já estivesse marcada. Alckmin considerou o encontro virtual “positivo” e assegurou que as conversas “vão continuar". Mas a iniciativa, além de tardia, está cercada de incertezas.

“É um apenas um começo e está um pouco atrasado”, diz Luiz Carlos Correia Carvalho, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). “Não sei qual é a sequência disso, ou como isso está sendo coordenado. Nós aqui do setor privado ficamos um pouco no escuro nisso tudo. A mim, preocupa uma certa sensação de letargia que eu vejo nisso tudo, uma ausência de atitude, uma inação que precisava ser corrigida."

"Agora é ficar esperando que venha um ‘tapa’ do Trump, por qualquer motivo que seja, por algum outro produto destemperado, que mereça uma nova reunião e conversa. Eu acho que essas coisas já podiam ser trabalhadas, já deviam estar sendo trabalhadas há mais tempo”, acrescenta o dirigente.

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Diferenças políticas entre governos dificultam negociações

À frente do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Alckmin também é responsável por conduzir negociações relacionadas ao comércio exterior. No entanto, deixar este primeiro contato com os EUA sob sua responsabilidade sinaliza uma redução no nível das tratativas entre os dois países.

Desde a reeleição de Trump, não houve contato oficial entre Lula e o líder norte-americano e nem mesmo entre os chefes de chancelaria dos dois países para negociações. Lula, inclusive, ameaçou "taxar de volta" em retaliação às tarifas anunciadas por Donald Trump.

"Se ele [Trump] taxar os produtos brasileiros, haverá reciprocidade no Brasil. Se taxar os produtos brasileiros, vou taxar os produtos que são exportados pelos Estados Unidos. Simples, não tem nenhuma dificuldade", disse o petista em janeiro.

Para o presidente da Abag, as diferenças políticas entre os dois governos emperraram a discussão. “A questão que eu vejo é que desde a posse do Trump, não fossem as questões ideológicas, um país com a dimensão do Brasil, com protagonismo que tem na área de segurança alimentar, na área de transição energética, com experiência em larga escala, naturalmente deveria estar conversando com o grande líder do mundo, os Estados Unidos, já há algum tempo sobre isso”, afirma.

Diplomacia pensa em ação conjunta

Diplomatas brasileiros tem acompanhado as discussões sobre o tema, mas, segundo Carvalho, sem condições de avançar. “O Itamaraty age, obviamente, apresentando uma proposta, um plano de ação ao Presidente da República e sendo aprovado, senão ele não age.”

Nesta sexta-feira (7), o perfil do Itamaraty no X informou um pequeno avanço nas tratativas. A relação comercial entre os dois países foi assunto de uma conversa por telefone entre o ministro Mauro Vieira, das Relações Exteriores, e o novo Representante de Comércio dos EUA (USTR), Jamieson Greer.

Segundo a postagem, Vieira ressaltou o superávit comercial em favor dos EUA na balança bilateral e o papel do Brasil no fornecimento de bens e insumos ao país. Ficou acertada ainda a criação de grupo de trabalho no âmbito do Acordo de Comércio e Cooperação Econômica para tratar de temas tarifários. Uma reunião virtual deve acontecer na próxima semana.

Na esfera da diplomacia, paralelamente, o governo brasileiro busca uma articulação conjunta com outros países. No último mês, o ex-chanceler Celso Amorim falou sobre essa possibilidade na Conferência de Segurança de Munique, após ser questionado sobre a estratégia brasileira para lidar com as tarifas de Trump.

“Nós temos que pensar, talvez a gente possa coordenar com outros países que também foram tarifados”, disse Amorim.

A possibilidade é prevista pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e pode ocorrer dentro do próprio órgão ou através de outros organismos de discussão internacional. Mas a iniciativa enfrenta desafios políticos.

"Acredito que veremos uma pressão diplomática conjunta, seja em reuniões como o G20, seja em reuniões das Nações Unidas (ONU) ou afins. Certamente os países afetados podem manifestar posição coletiva contra a postura unilateral dos EUA”, diz João Nyegray, professor de Negócios Internacionais da PUCPR. “Contudo, esses mecanismos não são simples e nem isentos de dificuldades políticas, pois cada país tem interesses específicos."

Amorim aposta em negociação direta

Assessor especial para assuntos internacionais da presidência, Celso Amorim disse ainda que o governo brasileiro tentaria negociar com empresas americanas antes de buscar uma articulação política.

"Muitas empresas nos Estados Unidos dependem do aço que elas compram do Brasil, então elas são nossas parceiras. Nós vamos tentar conversar com elas para ver se conseguimos chegar a alguma negociação. A negociação é sempre melhor”, afirmou.

Na avaliação de Monica Rodriguez, especialista em Comércio Internacional da BMJ Consultores Associados, a conversa entre as empresas não resolve a discussão sobre as taxas que Trump pretende impor.

"Essa negociação das empresas deve ocorrer mais em função dos preços, é uma tendência que está na mesa de negociações e pode tratar questões sobre contratos comerciais e preços aplicados, mas não resolve as alíquotas. Estas são determinadas pelo governo", pontua.

Neste mês, Trump oficializou a aplicação de uma tarifa de 25% sobre importações de aço e de alumínio, que deve entrar em vigor ainda neste mês. As novas alíquotas atingem diretamente a indústria brasileira.

Empresariado deve pressionar por negociação

Para Maria Teresa Bustamante, presidente da Câmara de Comércio e representante da Federação das Indústrias de Santa Catarina (Fiesc), o processo de negociação terá de ser impulsionado por parte do empresariado. “Só a partir de agora estou começando a ouvir os empresários assim preocupados”, diz.

Segundo ela, a ideia inicial era não reagir. Não se previa que poderia acontecer tão cedo, e havia esperança de que o Brasil talvez não fosse afetado, porque a balança comercial com os Estados Unidos é deficitária e supostamente não estaria na mira de Trump. “Mas a realidade está se impondo”, afirma. “O fato é que só a partir da fala do Trump no discurso para o Congresso que efetivamente a classe empresarial brasileira começa a cair na real.”

Bustamante, que também representa a Fiesc na Coalizão Empresarial – braço da Confederação Nacional da Indústria (CNI) que reúne as entidades de classe e especialistas na área de comércio internacional –, revela ter confiança na abertura do diálogo, não apenas institucional, mas diretamente com as empresas americanas.

“Os empresários brasileiros estão começando a entender que há necessidade de se organizar, criar esses canais de comunicação com seus pares americanos”, diz. “A negociação precisa passar a fazer parte integrante da agenda empresarial em todos os âmbitos. Tenho convicção que o Brasil vai saber dialogar, tem tradição diplomática de saber sentar à mesa e negociar.”

Jackson Campos, especialista em comércio exterior da AGL Cargo, ressalta que os negócios vão continuar acontecendo, independentemente das negociações institucionais. “Os Estados Unidos não são autossuficientes em tudo”, diz. “A ideia de Trump pode até ser esta, de atrair investimento para produção local. Mas isso não acontece do dia para a noite. Então, os negócios vão continuar sendo feito pelas empresas dos dois países.”

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Trump quer equilibrar tarifas entre países

Com relações diplomáticas históricas, os Estados Unidos são o segundo parceiro comercial do Brasil no mundo, atrás apenas da China. Em 2024, a corrente comercial dos dois país (soma de importação e exportação) foi de US$ 81 bilhões. Cada país enviou ao outro pouco mais de US$ 40 bilhões, com saldo ligeiramente negativo de US$ 282 milhões para o Brasil.

Relatório divulgado pelo banco Itaú em janeiro mostra que há uma discrepância nas alíquotas impostas entre os dois países. Em média, os produtos importados pelo Brasil dos EUA recebem tarifas de 11,2%, enquanto os americanos impõem uma média de 1,5% em tarifas sobre os produtos brasileiros.

"Há uma discrepância muito grande entre a entrada de produtos brasileiros nos Estados Unidos e entrada de produtos americanos no Brasil. O Trump está certo ao se referir que é preciso ter um equilíbrio nessas imposições de taxas alfandegárias", avalia Arthur Pimentel, presidente do Conselho de Administração da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB).

João Nyegray, professor do curso de Negócios Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), defende a negociação como o melhor caminho para evitar uma escalada tarifária, a exemplo do que foi feito pelo governo brasileiro durante o primeiro mandato de Donald Trump.

Na época, o Brasil reduziu tarifas de importação para alguns produtos americanos, como parte dos acordos celebrados com o governo do então presidente brasileiro Michel Temer (MDB) para evitar represálias comerciais do republicano. Entre os produtos que tiveram mudança nas alíquotas, o etanol americano foi um dos principais focos do governo brasileiro.

"Quando esses movimentos tarifários ocorreram antes, o Brasil preferiu buscar entendimentos bilaterais para evitar escaladas", explica Nyegray. "Em 2018, por exemplo, a então equipe econômica brasileira tentou negociar isenções ou limites de cotas para o aço e o alumínio. Agora, é provável que o Brasil reaja, ao menos diplomaticamente e por meio de negociações, pois a imposição de tarifas em setores estratégicos (como aço, alumínio e produtos agrícolas) afeta diretamente a balança comercial", disse.

Em contrapartida, Nyegray avalia que encontrar um caminho para negociação possa ser benéfico também para os americanos. "Ao encarecer produtos vindos do Brasil, especialmente aço e alumínio, a própria indústria dos Estados Unidos perderá competitividade e os produtos daquele mercado se tornarão mais caros. Estima-se que apenas nos automóveis os valores possam subir 25%", pontua.

De acordo com o docente, áreas como a construção civil, o complexo industrial-militar e a área de ferrovias e aeroportos também podem ser afetados, o que pode pressionar para um aumento da inflação e redução do poder de compra dos consumidores locais.

Brasil pode ampliar relações comerciais com outros países

Na avaliação dos especialistas, caso não haja um consenso sobre negociar as taxas alfandegárias de importação, o Brasil pode expandir seu comércio para outros países.

A analista Monica Rodriguez, da BMJ Consultores, acredita que as empresas vão buscar fazer o "escoamento" destes produtos para outros mercados. "O Brasil pode ter a chance de expandir um pouco as suas relações comerciais com outros países, que podem querer adquirir tanto o aço quanto o alumínio brasileiro", avalia. Ela explica que, quando essas tarifas forem implementadas, um dos primeiros fenômenos a serem observados é uma redução do preço internamente.

“O preço desses produtos dentro do Brasil tende a ser reduzidos porque vai haver uma oferta maior dele dentro do país. Nesse sentido, é muito possível que os preços, tanto do aço, quanto do alumínio, tendam a cair", pontua a especialista.  

O professor João Nyegray explica que esta é uma estratégia comum adotada por países exportadores quando enfrentam barreiras tarifárias. "As tarifas dos Estados Unidos podem forçar o Brasil a ampliar parcerias comerciais em regiões como a Ásia (particularmente a China), o Oriente Médio (importantes compradores de commodities agrícolas) ou a União Europeia (embora haja entraves regulatórios)", explica.

"De todo modo, a alta dependência de alguns mercados em específico – como EUA ou China, os nossos maiores parceiros comerciais – gera vulnerabilidades em momentos de tensão como esse”, pontua o docente da PUCPR. “Além disso, questões logísticas, sanitárias, fitossanitárias e tarifárias em outros blocos podem dificultar a rápida substituição do mercado americano.”

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