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Vista aérea de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre: com dívidas de mais de R$ 100 bilhões, Rio Grande do Sul agora lida com tragédia humanitária e prejuízo econômico.
Vista aérea de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre: com dívidas de mais de R$ 100 bilhões, Rio Grande do Sul agora lida com tragédia humanitária e prejuízo econômico.| Foto: Isaac Fontana/EFE

Castigado desde a semana passada por inundações provocadas pelas fortes chuvas, o Rio Grande do Sul ainda enfrentará o desafio de reerguer cidades inteiras com um quadro desastroso também em suas contas públicas. Sob um regime de recuperação fiscal desde 2022, o estado é considerado um dos mais deficitários do país e tem a pior nota (D) atribuída pelo Tesouro Nacional quanto à sua capacidade de pagamentos (Capag).

Os fatores que levaram a essa situação remontam ao período de quase cinco décadas, nas quais as contas estaduais apresentaram déficits recorrentes. De acordo com dados da Secretaria da Fazenda (Sefaz) do estado, ao longo de 50 anos, entre 1971 e 2020, somente em sete as receitas foram maiores do que as despesas, o que acabou por gerar um passivo insolúvel.

Para conseguir manter a estrutura do estado funcionando apesar da sequência de resultados negativos, os déficits foram sendo cobertos por endividamento, por meio de operações de crédito ou emissão de títulos públicos.

Também ajudaram a contornar o problema receitas de privatizações, alienações de ações do banco do estado, antecipações tributárias, atrasos nos pagamentos de fornecedores e parcelamentos de salários e do 13.º de servidores. Ou seja, ao longo de décadas, o estado foi adiando a questão, sem encontrar uma solução definitiva.

Conforme o último relatório anual da dívida pública do Rio Grande do Sul, ao fim de 2022, o saldo – que inclui operações de crédito nacionais e internacionais, além de parcelamentos de precatórios, débitos previdenciários e outras contribuições – alcançou R$ 93,6 bilhões. Na próxima atualização, prevista para ser divulgada no fim de maio, o valor estará próximo de R$ 102 bilhões.

Segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, no terceiro trimestre de 2023, a proporção da dívida consolidada líquida (DCL) gaúcha sobre a receita corrente líquida (RCL) chegou a 185,4%, acima do patamar de alerta previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que é de 180%.

Para se ter uma ideia, no Paraná – que além de estar na mesma região, tem níveis próximos de população, arrecadação e participação no PIB – a DCL é negativa. Ou seja, a dívida consolidada do estado é menor que sua disponibilidade de caixa e demais haveres financeiros.

O baixo índice de crescimento econômico e o gasto excessivo com o funcionalismo público são as principais razões a conduzirem o Rio Grande do Sul a essa situação, explica o economista Gustavo Inácio, professor do Programa de Pós-Graduação em Economia do Desenvolvimento da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Dados do Sistema de Contas Regionais (SCR) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o Rio Grande do Sul foi a unidade federativa com a segunda menor variação média do Produto Interno Bruto (PIB) entre os anos de 2002 e 2021 (1,6% ao ano), à frente apenas do Rio de Janeiro (1,3%), que também está sob regime de recuperação fiscal.

A folha de pagamento do governo gaúcho, por sua vez, carrega, além de uma quantidade excessiva de servidores, uma série de benefícios acumulados ao longo do tempo pelo funcionalismo. Inácio destaca que em todas as gestões do estado desde a redemocratização houve ampliação no quadro de funcionários públicos, sobretudo aqueles ligados à educação, saúde e segurança pública, porém sem um planejamento adequado.

“Há escolas no interior do estado com uma média de 15 a 20 alunos de ensino médio por sala. No Paraná, as turmas de ensino médio têm até 35 estudantes. Houve um planejamento em que se levou em consideração território em vez de a população”, explica o professor da PUCRS. Isso, segundo ele, independentemente de o governo de ocasião ser mais à direita ou mais à esquerda.

Desde 1982, ocuparam o Palácio Piratini Jair Soares (PDS), Pedro Simon (PMDB), Sinval Guazzelli (PMDB), Alceu Collares (PDT), Antônio Britto (PMDB), Olívio Dutra (PT), Germano Rigotto (PMDB), Yeda Crusius (PSDB), Tarso Genro (PT), José Ivo Sartori (PMDB) e Eduardo Leite (PSDB). O atual governador é o primeiro a exercer um segundo mandato no estado desde a redemocratização.

O aumento das despesas com pessoal em ritmo superior ao do crescimento das receitas correntes pesou fortemente na insustentabilidade fiscal do Rio Grande do Sul. Além disso, a elevada expectativa de vida da população gaúcha e o histórico de constituição da máquina pública, anterior à de grande parte dos demais estados, fez com que a fatia do Orçamento destinada à folha dos inativos hoje supere a dos ativos em áreas como saúde e educação. Segundo a Sefaz, o déficit previdenciário ultrapassa os R$ 10 bilhões anuais.

Nos últimos anos, o atual governo aprovou na Assembleia Legislativa um pacote de reforma administrativa que extinguiu diversos adicionais, como triênios, quinquênios e outras gratificações por tempo de serviço, além da incorporação de funções gratificadas às aposentadorias de inativos. “Tudo isso foi derrubado, mas, como são direitos adquiridos, vai levar algumas décadas para se manifestar na folha de pagamento”, diz Inácio.

A adesão ao regime de recuperação fiscal e outras medidas tomadas pelo atual governo, entre elas a instituição de um teto de gastos estadual, privatizações como a da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) e o aumento da alíquota modal do ICMS, permitiram que o estado obtivesse resultado primário positivo nos últimos três anos, interrompendo o longo histórico de déficits.

Acordos mal feitos pioraram situação fiscal do Rio Grande do Sul

Acordos controversos também contribuíram para o crescimento da dívida pública do Rio Grande do Sul. Em 1998, com uma dívida de cerca de R$ 9 bilhões, o então governador Antônio Britto (PMDB) refinanciou o passivo com governo federal, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). À época, optou-se por utilizar o IGP-DI como indicador de correção, em vez do IPCA.

Nos 15 anos seguintes, no entanto, o IGP-DI registrou alta de quase 250%, enquanto o IPCA ficou pouco acima dos 150%. Em 2014, na gestão de Tarso Genro (PT), a então presidente da República Dilma Rousseff (PT) sancionou lei complementar que alterou o índice inflacionário para cálculo da dívida, passando a vigorar o IPCA.

No ano seguinte, o então governador José Ivo Sartori (PMDB) iniciou o mandato suspendendo, inicialmente de forma temporária, o pagamento da parcela da dívida com a União. A moratória acabou mantida por medida liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a partir de julho de 2017. Os desembolsos voltaram a ser feitos apenas em 2022, quando foi homologado o regime de recuperação fiscal do estado.

Para o professor da PUCRS, o acordo, assinado sob a gestão federal de Jair Bolsonaro (PL), em um ano de eleições presidenciais e governamentais, foi firmado em bases irrealistas.

O texto considera, por exemplo, um crescimento econômico médio do Rio Grande do Sul de 3% ao ano. “O Brasil não faz isso. É difícil imaginar que um estado que de 2002 a 2021 teve crescimento médio de 1,6% ao ano, o penúltimo dentre os estados brasileiros, possa crescer 3% ao ano”, diz. “Isso impacta no nível de receitas, se reflete no nível de despesas e a dívida vai tomando uma proporção maior dentro do orçamento estadual.”

Conforme o plano, as parcelas serão crescentes ao longo do tempo até atingir o valor máximo em 2032. “Para 2024, já se previa um pagamento de R$ 3 bilhões da dívida, o equivalente a R$ 250 milhões por mês. Como referência, a folha de pagamento do estado gira em torno de R$ 1,9 bilhão no ano.”

Governo federal suspende cobrança de dívida do RS até o fim do ano

A dificuldade em lidar com as contas públicas foi ressaltada por Eduardo Leite no domingo (5), durante uma entrevista coletiva. “O Rio Grande do Sul já é um estado que tem dificuldade para operar na normalidade por conta das restrições fiscais. O problema que a gente tem de dívidas contraídas ao longo de tempos aqui no estado já nos dificulta a ação em tempos de normalidade”, disse o governador.

Nesta terça-feira (7), o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), atendendo a pedido do governo gaúcho, anunciou que apresentará um projeto para suspender o pagamento das parcelas mensais da dívida do Rio Grande do Sul até 31 de dezembro deste ano, em razão da calamidade provocada pelas chuvas no estado. “Fica a necessidade de se negociar um novo acordo com novos parâmetros”, avalia Inácio.

No mesmo dia, o Senado aprovou projeto de decreto legislativo que reconhece estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul e permite que os gastos com o socorro ao estado fiquem fora da meta fiscal.

O texto, que já havia sido aprovado na Câmara, será promulgado pelo Congresso, permitindo ao governo liberar créditos extraordinários destinados ao território gaúcho sem afetar as regras de contenção dos gastos públicos.

Com a destruição de grande parte do potencial produtivo do estado e a necessidade de reconstrução de cidades inteiras, a situação fiscal do estado tende a se agravar ainda mais.

Em 2023, o Rio Grande do Sul contribuiu com 6% do PIB nacional, ocupando a quinta colocação entre as unidades federativas com maior participação na atividade econômica. “O PIB do estado está concentrado na faixa Leste, que inclui litoral, região metropolitana de Porto Alegre e Serra Gaúcha”, explica o economista.

“Foi exatamente essa faixa a mais atingida pelas inundações, então dá para imaginar que a gente está falando de algo próximo de 5% do PIB brasileiro que está paralisado provavelmente pelo próximo mês”, diz.

Para o professor da PUCRS, a tendência apontada por climatologistas de eventos semelhantes mais recorrentes daqui para frente ainda deve gerar uma maior insegurança, elevando os custos de seguros para investimento em atividades no estado.

“Você pode ter um salto no crescimento econômico nesse momento de reconstrução, mas em geral você vai ter uma sinalização muito ruim para o estabelecimento de contratos”, diz.

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