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Argentina
Bandeira da Argentina: país tem uma das seis maiores inflações do mundo e está em crise| Foto: Pixabay

Como num tango, um velho parceiro volta a flertar com a Argentina: a crise. Os ingredientes são os mesmos: déficits fiscais sucessivos, que levam à ampliação da quantidade de moeda em circulação e contribuem para a elevação da inflação. O problema foi agravado pela Covid-19 e pela guerra na Ucrânia.

“O que para a maioria dos países foi a causa de uma crise, para a Argentina foi o catalisador de uma nova”, destaca o economista-chefe da Infinity Asset, Jason Vieira. Além do mais, ele cita que o país também demorou a retirar os estímulos concedidos durante a pandemia.

Fatores conjunturais se somaram a problemas estruturais. “Os argentinos vêm enfrentando ondas de crise há décadas e não dão um sinal de estabilidade para o resto do mundo”, afirma Leonardo Paz, analista do Núcleo de Prospecção em Inteligência Internacional da Fundação Getúlio Vargas (NPII/FGV).

A isso, some-se a dificuldade permanente em atrair capitais. “São sempre crises bem parecidas”, diz o analista de macroeconomia da hEDGE point Global Markets, Alef Dias.

Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que o cenário argentino traz algumas lições para o Brasil. Veja abaixo:

1) Pouco intervencionismo, ter metas de inflação e responsabilidade fiscal

Uma das principais lições que a Argentina deixa para o Brasil é a importância de respeitar o tripé econômico formado por superávit primário e não se endivide a longo prazo, ter metas de inflação definidas e pouco intervencionismo, como no câmbio, aponta o analista internacional da XP Investimentos, Francisco Nobre. “Isto dá mais credibilidade.”

A Argentina vem apresentando sucessivos déficits primários – quando a arrecadação não consegue dar conta das despesas, mesmo sem levar em conta aquelas com juros. O problema se acentuou com a crise causada pela pandemia da Covid-19, quando chegou a 6,5% do PIB.

O país tem uma meta estabelecida em acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de 2,5% do PIB. O Ministério da Economia diz que a Argentina vai perseguir esse objetivo, mas o mercado está reticente quanto a essa possibilidade. O Itaú, por exemplo, projeta que o déficit será de 3% neste e no próximo ano.

O analista da XP também destaca a necessidade de ter metas definidas de inflação, que ajudariam a direcionar a política monetária. Ele aponta que, para isso, é necessário ter um banco central independente, a exemplo do que ocorre no Brasil.

Desde 2018, o país vizinho acabou com a estratégia de metas de inflação e, de lá para cá, só não viu os preços aumentarem acima dos 50% ao ano em 2020.

O cenário está piorando. Somente em julho, ela foi de 7,4%, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec, na sigla em espanhol e acumulou uma alta de 71% em 12 meses. Isto faz com que a Argentina tenha a sexta maior inflação do mundo. À frente, segundo a plataforma de informações econômico-financeiras TradingEconomics, estão Zimbábue, Líbano, Sudão, Venezuela e Turquia.

As expectativas são de que o cenário possa piorar nos próximos meses: o Itaú projeta que a inflação poderá chegar a 95% em 2022 e 2023. A XP projeta menos: 84% para este ano. Mas aponta que a dinâmica inflacionária, que já era complicada, vem se agravando com variações mensais cada vez mais altas.

Outro fator importante, segundo Nobre, é deixar o câmbio quase que flutuar livremente: “as consequências do intervencionismo podem ser ruins no longo prazo”. A Argentina conta com várias taxas de câmbio e limita o acesso da população aos dólares. Cada pessoa pode comprar US$ 200 por mês e o que exceder é taxado em 75%. São, pelo menos, dois impostos incidentes sobre a compra de moeda estrangeira.

2) Manter um sólido arcabouço institucional

Outra lição que a Argentina deixa para o Brasil é a necessidade de ter um forte arcabouço institucional. “A situação atual da Argentina é um reflexo da instabilidade política e econômica registrada nas últimas décadas”, afirma Nobre, da XP.

São problemas de corrupção, excessivo intervencionismo do governo na economia e instabilidade política. Paz, da FGV, cita que a Argentina tem uma dinâmica político-partidária complicada que favorece a queda de ministros, como ocorreu no início de julho, com Martín Guzmán, no Ministério da Economia.

Mas a sua sucessora, Silvina Batakis, ficou só 24 dias no cargo. Ela foi substituída por um político influente, o ex-presidente da Câmara, Sergio Massa, que se comprometeu a reduzir subsídios, dar mais estabilidade à economia e cumprir as metas do acordo firmado com o FMI.

Entretanto, os problemas são grandes. O atual presidente Alberto Fernández, que tomou posse em dezembro de 2019, vive às turras com sua vice, Cristina Kirchner, que também é presidente do Senado. Ambos são potenciais candidatos à Presidência nas eleições do próximo ano.

Os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam também que é preciso manter uma política econômica coerente ao longo do tempo. “Não dá para ficar mudando de uma hora para outra, como vem acontecendo”, cita Nobre.

Viera, da Infinity Asset, destaca que falta à Argentina adotar uma política econômica mais séria e ortodoxa. “A adoção de teses sem comprovação efetiva só serve para acentuar os problemas. E dinheiro não leva desaforo.”

Analistas também apontam que um dos erros cometidos pela Argentina é focar em soluções de curto prazo. “Essas medidas geram alívio temporário, mas, no médio e longo prazo, a situação degringola”, cita Paz, da FGV.

3) Não criar empecilhos para o capital estrangeiro

Seguir o tripé macroeconômico e manter um sólido arcabouço institucional são fundamentais para que a Argentina seja atraente para o capital estrangeiro. Uma das maiores dificuldades do país é atrair esses recursos, mesmo com elevadas taxas de juro.

O problema é reforçado pelas sucessivas moratórias para o pagamento de compromissos internacionais. Desde a independência, em 1810, foram, pelo menos, nove episódios. Três deles neste século: 2001, 2014 e 2019. “Isto significa que há um risco muito grande em investir na Argentina”, diz Paz, do NPII/FGV.

No início de agosto, o país subiu a taxa básica de juros (Leliq) para 69,50% ao ano, uma das mais elevadas no mundo. “Foi necessário numa tentativa de conter a inflação e evitar a desvalorização cambial”, diz Dias, de hEDGE Point Global Markets.

Uma das consequências da dificuldade em atrair o capital estrangeiro são as baixas reservas internacionais. Elas estão em seu nível mais baixo desde 2018, quando chegaram à marca de US$ 62,6 bilhões. No dia 26, segundo o Banco Central da República Argentina (BCRA), eram US$ 36,9 bilhões, uma queda de US$ 2,7 bilhões em relação ao início do ano. Elas não pagariam um semestre de importações.

É uma situação diferente da do Brasil, um país que tem uma economia quatro vezes maior e um volume de reservas mais de nove vezes superior. Elas são suficientes para pagar 16 meses de compras no exterior.

Apesar desse cenário mais complicado, a Argentina tem lá seus atrativos. Os ativos estão muito baratos e não é uma economia pequena. São mais de 46 milhões de habitantes e é um dos maiores produtores mundiais de alimentos.

Mas, mesmo assim, o investimento estrangeiro privado – aquele aplicado no setor produtivo – corresponde a cerca de 1% do PIB. No Brasil, esse percentual é de 3,45%, de acordo com o Banco Central.

4) Ter uma moeda nacional confiável

Outro grande problema da Argentina é a falta de confiabilidade da população no sistema financeiro e na moeda local. Segundo a Bloomberg, em julho, cerca de 1,4 milhão de pessoas, o maior número desde 2020, comprou dólares no mercado formal, apesar dos fortes desincentivos.

Os argentinos sacaram pouco mais de US$ 1 bilhão de depósitos em dólar dos bancos desde o início de julho, informa o Valor. Transações rotineiras, como a compra de imóveis ou estabelecer um contrato de aluguel, são feitas na moeda norte-americana.

Um dos termômetros dessa desconfiança está na acentuada desvalorização do peso. E não é só frente ao dólar, como também ao real. Em 2019, R$ 1 comprava aproximadamente 15 pesos. Atualmente, quase 27 pesos. “É um problema que já se tornou crônico”, diz o professor Marco Antônio Rocha, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp).

Outro fator que, segundo ele, ajuda a complicar os problemas argentinos é a falta de mecanismos em moeda nacional para financiar a economia. “É uma lição que o Brasil já fez”, diz o professor. Mas Leonardo Paz, do NPII/FGV, lembra que o argentino é menos tolerante a juros.

“Quando cresce, a Argentina se endivida em dólar. Aumenta a demanda por esta moeda e se cria as condições para uma espiral perversa: há escassez de divisas, o que leva a mais alta nos preços, causando novas pressões de custos. Isto gera uma retroalimentação do problema inflacionário”, explica o professor da Unicamp. E, para complementar, há o problema de déficits.

Um dos caminhos para a Argentina, de acordo com ele, seria o de criar mecanismos de financiamento interno, em pesos. E também de estimular o desenvolvimento de cadeias produtivas locais que pudessem ser opções quando há uma maior pressão cambial encarecendo os artigos importados.

Os argentinos não tem muita saída, dizem os especialistas. “Elas obrigatoriamente terão de renegociar com o FMI e tentar atrair capitais estrangeiros”, destaca Rocha. E promover mudanças estruturais. Só assim, eles podem evitar perder espaços onde ainda são muito competitivos, como na produção de óleo e de farelo de soja, afirma Dias.

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