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O embate tarifário desencadeado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, afetou o mundo inteiro. Mas mirou principalmente as importações de produtos da China. E, com isso, abriu um novo capítulo de uma disputa maior pelo protagonismo econômico mundial.
Não se trata somente de uma agenda republicana ou trumpista, mas de uma preocupação do Estado americano visando conter a expansão da China e seu modelo de desenvolvimento.
Na prática, os americanos vêm tentando reduzir a importância comercial chinesa e conter o avanço do déficit da balança de pagamentos com o país, hoje na casa dos US$ 295 bilhões.
Tanto é assim que as altas tarifas impostas ao gigante asiático por Trump em seu primeiro mandato, em 2018, foram mantidas por seu sucessor, o presidente democrata Joe Biden. Agora, Trump redobra a aposta.
“A guerra comercial atual não é entre dois governos, Trump e Xi Jinping, mas entre dois Estados,” afirma Lívio Ribeiro, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV-Ibre). “É uma frente de contraposição entre dois modelos de organização econômica e política."
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Democracia é característica ocidental
Os modelos ocidental e chinês têm características completamente diferentes, determinadas por peculiaridades políticas, econômicas, históricas, socias e culturais. Na esfera política, o ponto central é a organização democrática. O governo autoritário chinês é centralizado e contrasta com os sistemas ocidentais.
“É um modelo de desenvolvimento que não pressupõe democracia, que não pressupõe livre escolha, pelo menos não em termos sociais,” diz Ribeiro.
No âmbito econômico, as diferenças são mais acentuadas (leia mais adiante). Para Ribeiro, sem entrar no mérito de cada um, é "inegável" que o modelo chinês deu certo naquele país. Em 30 anos, o país asiático aumentou sua participação na economia mundial de 4% em 1995 para aproximadamente 17% em 2024.
As regiões mais ricas da China hoje têm uma renda per capita nominal de US$ 30 mil. Para efeito de comparação, no Brasil, a renda per capita nominal média está em torno de US$ 15 mil. "A China avança muito em termos de bem-estar, basta olhar onde ela estava 30 anos atrás e onde ela está hoje", diz. "É outro país.”
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Expansão da China ofuscou hegemonia dos EUA
Na última década, a expansão da China tem ofuscado a hegemonia dos EUA. O protoganismo mundial ainda é dos norte-americanos, responsáveis pela maior parte – US$ 26,94 trilhões – do Produto Interno Bruto Mundial, estimado em US$ 105 trilhões em 2024. Mas a preocupação é com a tendência de longo prazo.
“Os EUA ainda são o maior centro financeiro, tecnológico e militar do mundo, o que dá vantagem para eles por pelo menos mais uns bons 20, 30 anos,” afirma Thomas Conti, doutor em Economia e professor do Insper. “A hegemonia, no entanto, tem que ser prevista em prazos mais longos, por décadas ou por um século. É a isso que os americanos estão atentos.”
Os EUA consideram que tiveram papel decisivo para o progresso econômico da China ao investir no país, especialmente durante as décadas de 1980 e 1990. A colaboração foi gestada desde 1971, quando o então secretário de Estado, Henry Kissinger, preparou secretamente o terreno para a histórica visita do presidente Richard Nixon em 1972.
O movimento estratégico visava normalizar as relações entre os dois países e permitiu que a China saísse do isolamento diplomático pós-Guerra Fria. O líder chinês Deng Xiaoping, que havia assumido a presidência em 1976, após a morte de Mao Tsé-Tung, que implantou o comunismo na China em 1949, promoveu reformas econômicas significativas, abandonando o modelo de economia totalmente planificada e introduzindo elementos do capitalismo de mercado para atrair investimentos estrangeiros.
Qual o modelo chinês hoje?
Com Xiaoping, a China adota um modelo híbrido, combinando elementos capitalistas e socialistas, comumente chamado de “capitalismo de Estado".
“Para quem estudou muito mais o modelo tradicional do capitalismo e as diferenças com a União Soviética, pode ficar difícil entender esse modelo chinês, que é híbrido", diz Conti.
Embora não haja o dirigismo total do Estado, nem todas as decisões na China são tomadas em função do mercado, da demanda e da oferta. O Estado controla setores estratégicos e as empresas privadas existentes operam dentro dos limites impostos pelo governo.
Membros do Partido Comunista Chinês (PCC) costumam compor os conselhos das organizações e controlar decisões econômicas. É uma forma de garantir estabilidade política e crescimento direcionado. “Existe uma interligação muito grande entre as elites e o partido; uma zona cinza entre o Estado, a economia e o partido", diz Ribeiro.
Expansão se acentuou na última década
Na última década, os chineses têm tentado promover no mundo seu modelo alternativo de desenvolvimento, consolidado no conceito “Shared Development and Future for Mankind” ("desenvolvimento compartilhado e futuro para a humanidade").
O movimento começou em 2015, quando os EUA eram governados pelo democrata Barack Obama, e foi se intensificando em 2018, quando Xi-Jinping, presidente da República Popular da China, passou a ter uma política mais “assertiva” com diversos países. Jinping lançou o projeto da "Nova Rota da Seda" (Belt and Road Initiative), expandindo a presença econômica e diplomática globalmente.
Internamente, o líder reforçou o controle do Partido Comunista e promoveu avanços em tecnologia e inovação. “Foi objetivamente uma forma de se colocar como uma alternativa ao "American Way of Life" ou ao ‘jeito ocidental', se você quiser expandir o conceito", afirma Lívio Ribeiro.
Realidade chinesa não é replicável no Ocidente
O modelo chinês serviu, segundo Ribeiro, como inspiração para determinados conjuntos de países asiáticos. “Tem semelhança com o adotado pelo Japão, Singapura, Coreia do Sul e outras economias menores que conseguiram, mais tarde, flexibilizar acesso aos mercados e 'rito institucional político', coisa que a China não dá muito sinal de que vai fazer no médio prazo.”
Apesar do bom desempenho, não há ameaça que ele possa substituir o modelo ociental, já que peculiaridades impedem sua replicação como receita de bolo, A China tem uma poupança interna elevada, algo muito diferente do cenário ocidental. Tem uma conta de capital fechada, ou seja, um sistema em que há restrições rigorosas sobre a movimentação de dinheiro para dentro e fora do país.
"É um modelo que pressupõe repressão financeira, com subsídio cruzado das famílias para as empresas", diz Ribeiro. "Junta algumas características já observadas em outros países, mas dentro de uma realidade econômica, cultural e institucional que é única.”
Segundo o pesquisador, a economia também vem enfrentando desafios para fazer a transição de um modelo baseado em investimento e exportação para um modelo centrado no consumo doméstico e serviços.
“Essa transição vem sendo tentada há muitos anos. Houve avanços, mas nos últimos anos estagnou", afirma. "Por inúmeras razões: pandemia, crise do mercado imobiliário e agora, enfim, a guerra comercial pode ser um fator. A questão agora é entender se o governo conseguirá avançar nesse processo de transição. Disso vai depender onde o modelo poderá chegar.”
Quem vai ganhar a guerra comercial entre EUA e China?
Os analistas são unânimes em dizer que a guerra tarifária de Trump não terá vencedores. Mas certamente haverá países mais prejudicados.
Para Ribeiro, a China vem se preparando há algum tempo para as tarifas e, como sociedade centralizada, tem capacidade de mover capital entre os diversos setores, conta com capital fechado e poupança alta, conseguindo, no curto prazo, “fazer frente à onda".
“A China tem mais condições de fazer frente à contraposição americana no quesito da guerra comercial do que as pessoas imaginam, e elas vão começar a entender isso com o passar dos meses”, diz. “É ruim? Sim. Vai atrapalhar? Vai. Mas a China colapsou, como eles dizem? O céu vai cair? Não, não vai.”
Para os EUA, a expectativa é que as tarifas culminem em inflação e crescimento econômico menor. “Não vai haver necessariamente uma recessão, mas as tarifas jogam o crescimento para baixo e a inflação para cima”, diz. “Isso vai gerar desconforto, provocando uma diminuição do bem-estar muito mais rapido numa sociedade como a americana.”
A tentativa de reindustrialização do país para trazer os empregos de volta também é fortemente contestada. "Ficar montando iPhones é irrelevante. O que realmente importa é desenhar, desenvolver a tecnologia. Isso está lá [nos EUA]. A China ainda é a fábrica e os Estados Unidos são o designer.”
EUA dependem mais de importações
Para Conti, em uma guerra comercial, os dois lados – o que vende e o que compra – vão sair prejudicados. “Mas quem sofrerá mais será o lado que tiver maior dificuldade em substituir o parceiro comercial”, diz.
Segundo ele, os EUA parecem subestimar a dependência da economia americana, sobretudo da indústria, em relação aos insumos chineses. O setor farmacêutico, por exemplo, que Trump prometeu taxar, é quase totalmente dependente das importações. “Isso pode ser mais um grande choque para o comércio internacional”, afirma.
Além disso, as principais importações da China são de produtos de alta tecnologia. Um dos itens de maior relevância é o conjunto de materiais, máquinas e equipamentos para aviação e indústria aeroespacial, entre eles aviões da Boeing ou turbinas da General Electric, por exemplo.
“Se os Estados Unidos perderem o mercado chinês de aviação ou de maquinário pesado, será um grande impacto. Vai ser difícil encontrar outro país que demande tanta máquina pesada e aviões quanto a China.”
Os chineses deverão passar a comprar os itens da Airbus, concorrente da Boeing, ou buscar outros fornecedores, como a Alemanha, fortalecendo os laços com a Europa. “Os EUA perdem duas vezes,” diz Conti.
Demografia é vantagem da China
No longo prazo, o tamanho e a demografia da China vão pesar fortemente na competitividade global.
“A China tem 1,5 bilhão de habitantes, o equivalente à população total das Américas e da Europa Ocidental, somadas a mais 300 ou 400 milhões de pessoas. Ainda assim, esse contingente seria menor do que a população chinesa,” explica o professor do Insper. “No longo prazo, fatores como escala, capacidade produtiva e inovação tecnológica fazem toda a diferença.”
Ele destaca, por exemplo, que mais de 1,5 milhão de engenheiros são formados anualmente na China. “Só o departamento de pesquisa da BYD [montadora de carros] tem 100 mil engenheiros,” diz. “O Brasil precisaria de anos de formação de profissionais para conseguir ter a estrutura de pesquisa da empresa.”
Além disso, os chineses registram mais de 1,5 milhão de patentes por ano, enquanto os Estados Unidos registram cerca de 250 mil. Outro dado impressionante: no ano passado, uma empresa naval chinesa produziu mais navios de carga do que os EUA produziram desde a Segunda Guerra Mundial até hoje.
“Tudo isso fortalece o posicionamento da China como uma potência global – e é justamente isso que os EUA tentam conter”, diz.
Confronto de EUA e China não deve repetir Guerra Fria
Mesmo com semelhanças históricas, o atual embate entre China e EUA, para Conti, não será uma repetição da Guerra Fria, entre ideais comunistas dos soviéticos e capitalistas dos americanos.
“A antiga União Soviética tinha uma característica mais militante,” afirma. “Eles pregavam uma ideologia marxista, socialista e universal, acreditando que eram responsáveis por promover revoluções ao redor do mundo para transformar outros países. O ‘modelo mental’ chinês não é este. Pelo menos por enquanto".
O fracasso do modelo soviético chegou a ser estudado por economistas chineses, enviados aos Estados Unidos. A experiência embasou planos econômicos chineses, após o desastre da experiência comunista promovida por Mao Tsé-Tung, consolidada na "Revolução Cultural", que resultou na morte de mais de 40 milhões de pessoas.
“O sistema que se tem hoje na China é, em grande medida, uma resposta aos fracassos que eles experimentaram", afirma Conti. "Eles aprenderam com isso e tentaram adotar algo mais moderno, um regime peculiar. É muito mais uma mistura do capitalismo com o mandarinato [sistema administrativo em que os mandarins, funcionários públicos altamente educados, ocupavam posições de poder], e com o sistema imperial chinês, do que necessariamente uma fusão entre capitalismo e modelo soviético.”
A reivindicação da China por Taiwan, para Conti, não é uma tentativa de expansão imperialista. Há um histórico diferente, já que o governo chinês considera a ilha parte do seu território. “Parece ser muito mais algo do tipo, ‘olha, a gente existe aqui há muito tempo, quem manda aqui somos nós’." Os EUA, por sua vez, com seu poderio, querem delimitar a área de influência chinesa. "É como se quisessem traçar uma linha vermelha e dizer 'daqui você não passa'."








