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As esperanças do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de seus aliados com o presidente do Banco Central (BC), Gabriel Galípolo, eram grandes quando ele assumiu o comando da autarquia, em janeiro. O objetivo era que, apesar da autonomia do órgão na condução da política monetária, houvesse uma atuação próxima ao governo petista. Após quase 12 meses de gestão, não é o que está acontecendo.
Ex-presidente do banco Fator, Galípolo foi uma das figuras mais importantes da área econômica durante a campanha eleitoral de 2022, chegou a ser o número dois no Ministério da Fazenda e ocupou a diretoria de Política Monetária do BC antes de assumir a presidência da autarquia. Apesar de não ser filiado ao PT, tem relações com o partido há mais de dez anos. Antes de indicá-lo para o comando da instituição, em meados de 2024, Lula chegou a chamá-lo de "menino de ouro". Como diretor do BC, teve atuação essencialmente técnica.
A frustração de Lula e seus aliados é evidente. A ministra da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, criticou, em junho, o aumento da taxa Selic (taxa básica de juros da economia) para 15% ao ano, afirmando que era "incompreensível" diante da desaceleração da inflação. Após a manutenção da Selic em novembro, ela voltou a criticar publicamente, dizendo que Galípolo "deixou a desejar". O líder do PT na Câmara, Lindberg Farias (RJ), foi mais duro em declarações públicas ao longo do ano: chamou a taxa de "indecente".
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Análise das atas do Comitê de Política Monetária (Copom) — colegiado que define a taxa básica de juros — feita pela Gazeta do Povo mostra avanço dos questionamentos à situação das contas do governo desde que Gabriel Galípolo assumiu o BC.
O antecessor de Galípolo no cargo, Roberto Campos Neto — indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro em 2019 — focou na incerteza gerada sobre a execução das metas fiscais e na mudança das próprias metas, o que aumentou a percepção de risco. Galípolo manteve o alerta fiscal, mas refinou a análise para incluir a dimensão estrutural dos gastos públicos e o debate sobre incentivos fiscais.
O BC reforçou que a percepção sobre a sustentabilidade da dívida continuava afetando a economia, mas inseriu o debate fiscal em cenário mais complexo — onde crédito direcionado (empréstimos subsidiados pelo governo), mercado de capitais e dinâmica fiscal também influenciam a efetividade da política monetária, não apenas a inflação.
Esse questionamento ficou evidente mais uma vez na última ata do Copom, divulgada na manhã desta terça (16).
"O Comitê reforçou a visão de que o esmorecimento no esforço de reformas estruturais e disciplina fiscal, o aumento de crédito direcionado e as incertezas sobre a estabilização da dívida pública têm o potencial de elevar a taxa de juros neutra da economia, com impactos deletérios sobre a potência da política monetária e, consequentemente, sobre o custo de desinflação em termos de atividade", destacaram os diretores do BC no documento.
"O Comitê manteve a firme convicção de que as políticas devem ser previsíveis, críveis e anticíclicas. Em particular, o debate do Comitê evidenciou, novamente, a necessidade de políticas fiscal e monetária harmoniosas", prosseguiu o texto.
A análise técnica das atas do Copom mostra que Galípolo segue linha de atuação semelhante à de seu antecessor.
Gabriel Galípolo mantém linha técnica de Campos Neto e frustra expectativa do PT
A comparação entre Gabriel Galípolo e seu antecessor no cargo mostra mais pontos em comum do que diferenças.
Alessandra Ribeiro, diretora de macroeconomia da Tendências Consultoria, destaca que houve "continuidade da forma de operação da política monetária". Segundo ela, o Banco Central é visto como "técnico", pautado por fundamentos econômicos como atividade, dinâmica de inflação, expectativas e dinâmica fiscal — com o fiscal sendo um risco importante.
As duas gestões sustentaram uma Selic elevada por período prolongado, trataram a desancoragem das expectativas como "fator de desconforto comum" e mantiveram o compromisso de levar a inflação à meta. "Não foi observada nenhuma evidência, nenhum sinal de que o Banco Central esteja entrando por outro caminho que poderia sugerir algum tipo de influência política", afirma ela.
Essa continuidade se manifesta em três dimensões: a linguagem utilizada, o diagnóstico sobre como a política monetária afeta a economia e a postura de cautela frente às incertezas.
André Braz, coordenador de índices de preços do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), reforça essa avaliação ao destacar que o discurso da diretoria do Banco Central na era Galípolo é parecido com o discurso da diretoria no tempo de Campos Neto.
Josilmar Cordenonssi Cia, professor de Finanças da Universidade Presbiteriana Mackenzie, diz que a abordagem conservadora e dura adotada pelo Copom sob Galípolo fortaleceu a reputação do BC junto aos operadores do mercado — estratégia que foi mantida em relação ao que era esperado para o combate à inflação.
Segundo ele, a atuação de Gabriel Galípolo, ao contrariar o discurso do presidente Lula mantendo a Selic em 15%, favoreceu a ancoragem das expectativas de inflação futura e o ganho de credibilidade, dissipando o temor de que o BC se tornasse pouco independente, como visto em gestões passadas.
"Muitos temiam um presidente do BC semelhante à gestão de Alexandre Tombini, que se mostrou muito pouco independente em relação à presidente Dilma, mantendo os juros baixos e a inflação sempre acima da meta ou até do teto da meta", diz Cia.
Essa continuidade técnica se reflete não apenas no discurso, mas também na condução prática da política monetária — especialmente no ciclo de juros.
Selic a 15%: Gabriel Galípolo impõe juros mais altos que Campos Neto
A linguagem do BC para descrever a condução da política monetária permaneceu consistente. Na era Campos Neto, o Comitê frequentemente citou que a conjuntura demandava "serenidade e moderação" ou "parcimônia". A mesma terminologia de "serenidade e moderação" foi mantida na era Galípolo para descrever a necessidade de cautela na condução da política, especialmente diante de expectativas desancoradas.
Porém, a estratégia do ciclo de juros evoluiu. Campos Neto encerrou sua gestão acelerando a alta dos juros: elevou o ritmo de alta de 0,5 p.p. a cada reunião para 1 p.p., adotando uma sinalização explícita e agressiva de ajustes da mesma magnitude nas reuniões seguintes.
Galípolo iniciou cumprindo esse aperto contratado, mas depois desacelerou gradualmente (de 1 p.p. para 0,5 p.p. e depois 0,25 p.p.) até estacionar a taxa em 15% ao ano em junho. A estratégia passou a focar na necessidade de "observar os impactos acumulados" da política monetária já implementada. A Selic encerrou o ano nesse patamar, a maior taxa em 19 anos e a segunda maior do mundo, atrás apenas da Turquia, segundo a consultoria financeira MoneYou.
A postura restritiva é uma continuidade: quando Campos Neto presidia o Banco Central, no início do terceiro mandato de Lula em janeiro de 2023, a Selic estava em 11,75% ao ano. Quando Gabriel Galípolo assumiu o comando da autoridade monetária em janeiro, a taxa básica de juros estava em 12,25% ao ano — e continuou subindo até os atuais 15%.
O atual presidente do Banco Central levou a taxa a um patamar ainda mais restritivo que seu antecessor. As atas desta era enfatizam que esse nível deve ser mantido por período suficiente para garantir que a inflação volte à meta, refletindo um cenário onde as expectativas desancoradas exigiram uma dose de juros nominal superior à da gestão anterior.
Essa postura restritiva visa garantir o combate efetivo à inflação, mesmo que isso signifique juros em níveis historicamente elevados.
O mercado financeiro projeta que a Selic caia para aproximadamente 12,25% ao ano até o fim de 2026 — o mesmo nível em que Gabriel Galípolo a encontrou quando assumiu em janeiro. Isso sugere que o mercado acredita que o pior da inflação passou e que há espaço para alívio monetário. No entanto, enquanto a inflação de serviços não convergir para a meta, Galípolo dificilmente terá margem para reduzir juros de forma mais agressiva.
A razão central para a manutenção dos juros em patamar tão elevado é a desancoragem das expectativas de inflação — quando o mercado financeiro e empresas não acreditam que o governo vá cumprir a meta.
Inflação de serviços persiste em 5,9% e impede corte de juros
A desancoragem das expectativas de inflação foi tratada como problema central e persistente nas duas gestões, descrita como causa de "desconforto comum". Campos Neto avaliou que a desancoragem tornava mais difícil controlar a inflação e exigia atuação firme para reancorá-las. Gabriel Galípolo seguiu enfatizando que ambientes com expectativas desancoradas exigem juros mais altos por mais tempo.
Os números indicam progresso, mas com ressalvas. O IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), que mede a inflação oficial do país, acumulou 3,92% até novembro — a menor taxa desde 2021, segundo o IBGE. O mercado espera inflação de 4,1% para 2026, conforme o boletim Focus — pesquisa semanal do Banco Central que coleta projeções de economistas do mercado financeiro. Isso sugere que as expectativas estão convergindo.
A inflação de serviços, porém, permanece pressionada: acumulada em 12 meses, está em 5,9%, 1,2 ponto percentual acima do verificado em novembro de 2024, e continua acelerando mensalmente desde setembro.
Essa dinâmica explica por que Galípolo mantém a postura dura: o trabalho de desinflação ainda não está completo, especialmente em serviços.
A pressão inflacionária em serviços tem uma causa específica: o dinamismo do mercado de trabalho.
Desemprego em mínima histórica pressiona inflação e juros
Na era Campos Neto, o Comitê debateu profundamente o dinamismo do mercado de trabalho — muitos empregos e salários crescentes — e a pressão resultante sobre a inflação de serviços.
Na gestão Galípolo, o Comitê mantém essa preocupação: aponta surpresas recorrentes no mercado de trabalho (emprego e renda) e avalia que esse dinamismo sustenta o consumo, dificultando o retorno da inflação à meta de 3% ao ano (com tolerância de 1,5 ponto percentual) — especialmente em serviços.
A taxa de desemprego atingiu 5,4% em outubro, o menor nível desde o início do levantamento em 2012, segundo o IBGE — evidência do dinamismo do mercado de trabalho que preocupa o Copom. E de fato, a inflação de serviços continua acelerando mensalmente desde setembro, confirmando a pressão inflacionária que o mercado de trabalho dinâmico gera.
Sinais de desaquecimento, porém, já aparecem. Entre janeiro e outubro, foram abertos 1,8 milhão de postos de trabalho com carteira assinada — 15,3% a menos do que no mesmo período de 2024, segundo o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), do Ministério do Trabalho. Apesar da taxa de desemprego em mínima histórica, a criação de empregos desacelera, sugerindo que os juros altos começam a surtir efeito no mercado de trabalho.
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que assim como Lula tem origem no meio sindical, comentou em novembro os números fracos do Caged divulgados em outubro: "Já passou a hora da Selic cair".
Além do mercado de trabalho aquecido, Galípolo enfrentou problemas específicos de oferta que pressionaram a inflação de curto prazo. As atas trouxeram diagnósticos sobre a estiagem, a elevação dos preços de carnes e o ciclo do boi — fatores apontados como responsáveis por deteriorar a inflação de alimentos e dificultar a desinflação no curto prazo, desafios que não estavam presentes com a mesma intensidade na gestão Campos Neto.
Se os desafios domésticos já são significativos, o cenário externo adiciona outra camada de complexidade à condução da política monetária.
Protecionismo de Trump adiciona incerteza à política monetária
Embora os fatores de risco tenham evoluído, a reação de ambas as gestões foi a de exigir cautela redobrada por parte de países emergentes. Campos Neto enfatizou a incerteza sobre a desinflação global e a política monetária dos EUA, especialmente quando o Fed iniciaria os cortes de juros. A preocupação central era a sincronia e a extensão dos juros altos nos países desenvolvidos.
Galípolo manteve o diagnóstico de um ambiente externo adverso e incerto, mas a incerteza externa ganhou uma nova camada de complexidade com a política comercial de Donald Trump.
As atas sob Galípolo mostram preocupações com a introdução de tarifas comerciais, protecionismo e seus efeitos variados na inflação global e nos fluxos de capital para emergentes. O termo "política comercial" tornou-se um fator de risco central e recorrente. Galípolo reforçou que não há relação mecânica com os juros domésticos, mas que o cenário prescreve cautela.
Apesar da relevância do cenário externo, o principal desafio de Galípolo está na dinâmica fiscal doméstica e seus limites para a política monetária.
Dívida encarece com juros altos e pressiona BC
Nas duas gestões, o Copom manteve parágrafo praticamente idêntico alertando sobre os riscos fiscais estruturais. O Comitê alertou que a falta de reformas estruturais, o aumento de crédito direcionado e as incertezas sobre a estabilização da dívida pública podem elevar a taxa neutra de juros (o nível que nem estimula nem restringe a economia), reduzindo a potência da política monetária.
As duas gestões destacaram a necessidade de harmonia entre as políticas fiscal e monetária.
Pedro Raffy, professor de economia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, lembra que o papel da autoridade monetária é "combater a inflação" e que o fato de o presidente da República ter indicado o presidente do BC "não dá sinais de que no futuro isso possa comprometer a autonomia da política monetária".
A continuidade na linguagem técnica, no diagnóstico sobre os riscos fiscais e na postura de Galípolo demonstra que "a credibilidade institucional, de fato, foi preservada".
Essa credibilidade preservada, no entanto, não elimina os desafios concretos impostos pela trajetória da dívida pública. A dívida bruta atingiu 78,4% do PIB em outubro — o nível mais elevado desde outubro de 2021, sob pandemia — e as projeções indicam continuidade desse crescimento.
A Instituição Fiscal Independente (IFI), braço do Senado, sinaliza para 82,7% no final de 2026. O mercado financeiro é mais pessimista, projetando 83,8%, segundo o último boletim Focus.
Essa trajetória preocupa o Copom porque juros mais altos, embora necessários para combater a inflação, encarecem o pagamento da dívida pública, criando um círculo vicioso: quanto mais alta a Selic, mais cara fica a dívida; quanto mais cara a dívida, mais pressão fiscal; quanto mais pressão fiscal, mais desancoragem de expectativas.
É por isso que Galípolo enfatiza que a política monetária sozinha não resolve o problema — é necessário um ajuste fiscal crível. A Selic em 15% ao ano representa um ônus significativo para a economia: aumenta o custo do crédito, desestimula o investimento e pressiona a dívida pública.
Esse diagnóstico gera tensão com o Ministério da Fazenda. O ministro Fernando Haddad, que em entrevistas na semana anterior à reunião de novembro já havia defendido que havia condições para a redução dos juros, manteve a crítica após a divulgação da ata pelo colegiado. "Não tem como sustentar 10% de juro real com inflação a 4,5%", declarou à imprensa.
Crédito direcionado cresce e reduz eficácia dos juros altos
O crédito direcionado cresce enquanto os juros sobem. Segundo o BC, o saldo das operações de crédito em outubro era de R$ 6,9 trilhões, dos quais 42,7% eram direcionados pelo governo — a maior participação em cinco anos, quando o país enfrentava a pandemia da covid-19, segundo dados do Banco Central.
Essa expansão do crédito subsidiado funciona como um amortecedor: enquanto a Selic encarece o crédito livre, o governo oferece crédito direcionado mais barato para sustentar o consumo.
Isso cria, porém, um dilema para Galípolo: quanto mais crédito direcionado, menos efetivos são os juros altos. O Copom reconhece essa dinâmica e a inclui em seu diagnóstico como um fator que limita o poder de seus aumentos de juros. O dilema é claro: sem crédito direcionado, o consumo desabaria; com crédito direcionado, a inflação fica mais difícil de controlar.
Enquanto esse debate técnico sobre a efetividade da política monetária prossegue nas esferas do governo e do BC, os efeitos concretos dos juros altos já são sentidos por milhões de brasileiros.
Juros altos levam inadimplência a recorde: 80,4 milhões de brasileiros
Os juros altos impostos por Gabriel Galípolo têm um preço que vai além dos números macroeconômicos. A taxa média de juros para pessoas físicas atingiu 36,6% ao ano em outubro — 1,7 ponto percentual acima de dezembro de 2022, mês anterior à posse de Lula —, tornando o crédito mais caro para o consumidor.
O resultado é visível na inadimplência: ela chegou a 4% do total das carteiras de crédito do Sistema Financeiro Nacional (SFN) em outubro, o maior número desde maio de 2017. Entre pessoas físicas, a inadimplência atingiu 4,9%, o maior índice desde março de 2013.
Segundo a Serasa, outubro registrou 80,4 milhões de endividados — o maior número em toda a série histórica iniciada em 2016 —, correspondendo a 49,2% da população adulta. Esses números revelam a tensão entre o combate à inflação e a saúde financeira das famílias brasileiras. Enquanto Galípolo mantém juros altos para controlar a inflação, milhões de brasileiros enfrentam dificuldades para pagar suas dívidas.
Em entrevista no primeiro semestre, Lula reforçou suas críticas à política de juros altos do Banco Central. Ele afirmou Galípolo tinha como missão "consertar" a taxa de juros, que segue como foco de tensões entre o governo e a autarquia.
Com a sinalização do Copom na ata da reunião de novembro de manter a taxa básica de juros em 15% ao ano por "período prolongado", o PT tenta administrar o descontentamento interno com Galípolo e evitar um embate mais pesado. O próprio presidente também tem evitado críticas diretas, o que equivaleria a reconhecer que errou ao acusar Campos Neto de agir politicamente.







