
A nova biografia do CEO da Apple escrita por Walter Isaacson é recheada de histórias suculentas sobre o ego de Jobs, mas não explica suas motivações
Após a sua morte, a web entrou em erupção com histórias sobre Steve Jobs anedotas de amigos, funcionários e rivais, que tinham a intenção de pintar a imagem que temos do cofundador da Apple como um gênio transcendental, um homem cujos caprichos e personalidade contundente poderiam ser perdoados, por sua devoção admiravelmente fanática na criação de produtos para mudar o mundo. Houve (alegadamente) a vez em que ele pediu que os engenheiros da equipe original do iPod ficassem trabalhando a noite inteira mexendo no plugue dos fones de ouvido para que eles produzissem um som de clique mais satisfatório, por exemplo, ou a manhã quando ele ligou para Vic Gundotra, um dos executivos do Google, para reclamar do tom de amarelo do ícone do aplicativo do Google para o iPhone. Várias dessas histórias deixaram implícito que, bem lá no fundo, o CEO enérgico era na verdade um homem muito gentil e pé-no-chão. Não muito tempo atrás, uma família que estava na frente da sede da Apple abordou Jobs para pedir a ele que tirasse uma fotografia do grupo. Jobs percebeu que eles não tinham ideia de quem ele era, e alegremente e cuidadosamente compôs uma ótima fotografia. Percebe? Apesar de tudo o que você já ouviu, como sugerem essas histórias, Steve Jobs não era uma pessoa tão difícil, afinal de contas.
Acontece, no entanto, que ele foi muito pior do que você jamais suspeitou. Existem diversas histórias admiráveis de Steve Jobs em "Steve Jobs", a muito esperada biografia autorizada, mas elas são ofuscadas pelos muitos, muitos casos mesmo, nos quais Jobs aparece como um idiota de marca maior. Jobs era rude, mesquinho, abusivo e frequentemente negligente a todos em sua vida; as pessoas que ele odiava passaram maus bocados, mas as que ele amava algumas vezes passaram por coisas piores. Algumas coisas não chegam a ser surpresa para ninguém. A arrogância de Jobs, seu amor-próprio monumental, sua irresponsabilidade e sua constante crueldade para com aqueles que falhavam em corresponder às suas expectativas sempre seguiram a sua imagem. Durante sua vida, Jobs realmente expressou arrependimento por algumas de suas ações incluindo ter abandonado sua primeira filha, Lisa, por vários anos depois de ela ter sido concebida fora do casamento. (Ele continuou sugerindo que poderia não ser o pai dela, mesmo depois do fato ter sido provado por um teste de paternidade.)
Mas Isaacson compilou tantos exemplos da selvageria pessoal e profissional e tantos ocorridos nos anos mais velhos, os supostos mais maduros, de Jobs que até mesmo os admiradores de longa data de Jobs (grupo no qual me incluo) terão de lutar para gostar do homem retratado no livro. Suspeito que Jobs não teria se importado com esse retrato. Eu não tenho nenhum esqueleto no meu armário que não tenha permissão para sair, disse ele a Isaacson, e ele claramente não se importava com o que as pessoas pensassem sobre ele. (Qualquer um que não gostasse dele provavelmente era um palhaço", sua definição favorita.)
Mesmo assim Jobs disse que queria um biógrafo para garantir que seus filhos tivessem alguma noção de quem ele era e para poder explicar as escolhas que havia feito. E é isso que é tão estranho e decepcionante sobre esse livro: Isaacson conduziu mais de 40 entrevistas com Jobs, mas o CEO parecia relutante em refletir sobre sua vida com qualquer profundidade real. Mesmo quando estava morrendo, Jobs não estava com humor para analisar suas qualidades, suas fraquezas, suas vitórias ou seus erros.
Ele incorporou tantas contradições foi um apaixonado pela filosofia budista antimaterialista, mas se tornou o materialista mais bem-sucedido de sua época; celebrava a cultura hacker de liberdade intelectual, mas bloqueou todas as coisas que produziu , mas não se importou em explicar ou mesmo chamar a atenção sobre muitas delas. Perguntas-chave ficaram sem resposta; por exemplo, Jobs não diz o que aprendeu durante seu exílio da Apple que tenha permitido que fosse tão espetacularmente bem-sucedido quando retornou à companhia na metade dos anos 1990. Ele também não explicou sua inclinação pelo sigilo corporativo por qual motivo esconder suas inovações tornou-se uma parte tão importante de seus planos de marketing? E como ele desenvolveu seu estilo de apresentação de lançamento de produto, que tornou-se sua marca registrada? Ele não diz.
Isaacson tenta valentemente acrescentar alguma profundidade ao perfil. Somando-se ao tema do abandono dos pais, o autor brinca com a ideia do distanciamento de Jobs da realidade: ele foi tão ruim para as pessoas e tão bom com seus produtos porque era capaz de se focar no trabalho como se nada mais no mundo importasse para ele (o que, talvez, fosse verdade). Jobs acha que as regras normais do convívio social não se aplicam a ele", contou Jony Ive, veterano chefe de design da Apple, a Isaacson; talvez seja por isso que ele estacionava em vagas reservadas a deficientes, foi rude com todos os garçons que já encontrou na vida e acreditava não precisar tomar banho.
A morte de Jobs provocou uma enxurrada de tributos hagiográficos e, de certa maneira, o livro de Isaacson serve como uma correção necessária. Jobs foi um gênio e suas realizações na Apple serão lembradas durante décadas. Mas o livro quebra ordenadamente o mito de que ele foi a fonte de todas as grandes ideias da companhia. Na verdade, o livro é melhor quanto reconta seus muitos erros ou quase-erros: seu tempo na NeXT, companhia que ele fundou quando expulso da Apple, foi uma comédia de excessos autocráticos. Ele também esteve do lado errado de algumas das decisões mais essenciais tomadas pela Apple durante a última década. Ele não queria fazer uma versão Windows para o iPod e o iTunes; quando todos os seus assistentes lutaram contra ele sobre o assunto, ele finalmente admitiu que eles estava certos, embora de má vontade. Ele também foi contra acrescentar aplicativos ao iPhone e levou um longo tempo para que percebesse que o maior valor da Pixar residia em seus cineastas.
Fica claro que nos últimos 15 anos de vida de Jobs, algo nele mudou: ele de repente se tornou um melhor administrador, tornou-se melhor em prever os tipos de tecnologias que as pessoas iriam querer e melhorou em sua escolha de subordinados experientes (e, algumas vezes, em ouvir o que eles tinham a dizer). A única vez que Jobs realmente refere-se a essas mudanças no livro está presente em uma seção fascinante que fala ostensivamente sobre o tipo de música que ele ouvia. Durante uma entrevista em sua sala de estar, ele tocou duas versões das Variações Goldberg de Bach gravadas por Glenn Gould a primeira gravação feita quando Gould tinha 22 anos e a segunda, quase 30 anos depois. Jobs também tocou duas versões de Both Sides Now, de Joni Mitchell, a primeira gravada em 1969 e a segunda, em 2000. É interessante como as pessoas envelhecem, contou a Isaacson enquanto escutava às musicas. Mais tarde, logo depois de ter renunciado à Apple, ele disse a um amigo: Eu aprendi algumas coisas. Realmente aprendi. Mas isso é tudo o que conseguimos. Jobs reconhece que mudou para melhor à medida que envelheceu e percebe que aprendeu algumas coisas ao longo do caminho. Como ele mudou, por que, o que ele aprendeu e como ele foi capaz de conseguir o maior milagre corporativo que o mundo jamais viu permanece um mistério. E, infelizmente, esse mistério pode permanecer para sempre.
* Farhad Manjoo é colunista de tecnologia para a Slate, onde este artigo foi originalmente publicado.



