• Carregando...
 | GORDON WELTERS/NYT
| Foto: GORDON WELTERS/NYT

Alguns duques bávaros vieram a Ingolstadt, uma bela cidade às margens do Danúbio, há 500 anos e criaram o que muitos alemães consideram a razão pela qualidade superior de suas cervejarias: a lei de pureza.

Somente lúpulo, água e cevada deveriam ser os ingredientes da cerveja, decretaram os duques. O trigo, acima de tudo, deveria ser poupado para a produção de pães de verdade para as pessoas famintas.

Naturalmente, meio milênio depois algumas mudanças ocorreram – a levedura, por exemplo, é permitida desde o século XVII. Mas os alemães, cuidadosamente conservadores, ainda reverenciam a lei de pureza, ou Reinheitsgebot, e insistem no método de fabricação de cerveja, mesmo que a lei seja flexível, dependendo da ocasião.

“Essa é a lei mais antiga em vigor em qualquer lugar do mundo no que diz respeito a produtos de consumo. Além de ser um ótimo argumento de marketing das tradições alemãs”, afirmou Gerd Treffer, diretor de turismo e historiador local.

Porém, mesmo enquanto os alemães celebram o aniversário da lei de pureza, com dezenas de eventos planejados ao longo do ano (incluindo uma exposição de arte em torno do tema “as entranhas da cerveja”), nem todo mundo está tão entusiasmado a respeito dela.

Alexander Grau, colunista da revista política e cultural Cicero, é favorável ao fim da lei. Longe de proteger os consumidores, a lei não passa de marketing, “um fetiche ao qual os alemães se agarram como o papa a seu credo”, escreveu Grau. Mais do que isso, outras pessoas argumentam que a lei impede a invenção e a imaginação dos cervejeiros.

Novos ares

Um homem que certamente espera que os alemães estejam prontos para uma mudança – à medida que cervejas artesanais, ales de verdade e outras variantes crescem ao redor do planeta – é Greg Koch, de 52 anos, que abriu a Stone Brewing no Condado de San Diego, na Califórnia, em 1996 e agora planeja distribuir suas cervejas artesanais em Berlin e no restante da Europa.

O que a Reinheitsgebot significa para Koch? “Além de ser uma palavra longa e difícil de soletrar – e olha que eu sei como soletrá-la –, ela é uma lei fiscal”, argumentou. Esqueça os séculos de tradição.

“Eu aposto que nenhum fã de cerveja comum saberia dizer que a lei só foi estampada nos rótulos das cervejas alemãs a partir dos anos 1950, e que só começou a ser utilizada como termo de marketing a partir do século XX”, afirmou.

Isso também significa que, mesmo que ele abra uma fábrica na Alemanha, suas cervejas não serão consideradas alemãs.

“Essa é uma marca importante para a Alemanha, e não podemos abandoná-la. Existem poucos produtos nos quais os consumidores confiam mais do que na cerveja”, afirmou Josef Pfaller, de 50 anos, chefe de produção da Herrnbrau, que existe desde 1471 e é uma das 30 cervejarias dessa cidade de 140 mil habitantes.

De fato, os 81 milhões de alemães são o povo que mais bebe cerveja per capita no mundo, depois de seus vizinhos tchecos.

Mercado

A Alemanha conta com 1.250 cervejarias – cerca de metade fica na Bavária, onde o presidente Barack Obama bebeu um copo matutino (aparentemente sem álcool, segundo nos contaram) ao lado da chanceler Angela Merkel durante a reunião do G-7 no ano passado e lamentou (ainda) não ter visitado a Oktoberfest.

Porém, até mesmo na Bavária, conforme afirmou Pfaller durante um passeio de três horas pela cervejaria (onde tomamos alguns goles da sua cerveja comemorativa), “o mundo não pode ficar parado”.

“É claro que as coisas mudaram desde o século XVI”, afirmou Pfaller, que nasceu a pouco menos de 50 quilômetros da fábrica, aprendeu a fazer cerveja na prática durante três anos e, então, se formou basicamente na fabricação, gestão e marketing de cervejas.

Atualmente, ele supervisiona uma equipe de 80 pessoas, com máquinas antigas e modernas – os velhos tonéis vieram para a fábrica em 1974, quando a Herrnbrau saiu do centro da cidade, e agora fazem companhia a equipamentos norte-americanos de última geração e as barulhentas máquinas que carregam, lavam e enchem 27 mil garrafas a cada turno de 8 horas.

Esse misto de tradição e modernidade é típico das empresas de médio porte da Alemanha, que são a espinha dorsal do sucesso econômico do país.

Assim como os engenheiros alemães buscam as melhores técnicas e ferramentas, misturando suas habilidades com as tecnologias do século XXI, a empresa de Pfaller sempre monitora as mudanças no gosto e nas demandas dos consumidores.

Quando a Herrnbrau notou, por exemplo, que o público jovem (de cerca de 18 anos) preferia cervejas mais suaves do que os de 40 anos, eles criaram uma nova fórmula, a Panther Weissbier, utilizando um tipo de trigo que costumava ser proibido.

Adaptação

“Nós nos adaptamos apesar da lei de pureza”, afirmou Pfaller com um sorriso. “Muitos detalhes podem fazer a diferença em uma cerveja” – especialmente a água, que nesse caso vem de uma fonte a 250 metros de profundidade e que, segundo ele, teria 8.000 anos.

Mesmo com a lei, pureza é um termo relativo. Um grupo de pesquisa, o Instituto Ambiental de Munique, causou rebuliço em fevereiro ao testar 14 das cervejas mais vendidas da Alemanha e encontrar traços de glifosato, um pesticida suspeito de causar câncer, em todas as marcas.

De que adianta dizer que a lei protege o consumidor, concluiu Sophia Guttenberger, a bióloga que supervisionou os testes, que segundo ela foram realizados para coincidir com uma decisão da comissão europeia sobre a proibição do glifosato, sem qualquer relação com o aniversário de 500 anos da lei de pureza.

Mas é exatamente esse tipo de preocupação que deu origem à lei há 500 anos.

Treffer, o diretor de turismo, fala com orgulho de uma exposição histórica que mostra as fortunas e a população de Ingolstadt, com as ascensões e quedas causadas pelas vicissitudes da história.

Ingolstadt – mais conhecida hoje em dia pelos carros da Audi – foi durante séculos notória pela universidade criada em 1472, e pelo seminário mais antigo fora de Roma, destacou.

Na época, estudantes e plebeus precisavam de proteção contra as substâncias que eram colocadas na cerveja. Por isso em 1516, os duques também agiram com o objetivo de impedir que essas substâncias extremamente tóxicas fossem consumidas pelas pessoas, afirmou Treffer.

E talvez também para conservar o poder – já que “quem bebia demais não conseguia trabalhar, e quem não trabalhava não podia ser controlado”, afirmou Treffer.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]